Após dez anos de lançamento, especialistas defendem recriação do Pacto Pela Vida

Era terça-feira, 8 de maio de 2007. No Palácio do Campo das Princesas, no Recife, o então governador Eduardo Campos lançava o Pacto Pela Vida. Ousado, o projeto definia como meta a redução anual de 12% no número de homicídios – os Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLI). Nascia com a participação de setores ouvidos em plenárias realizadas semanas antes e norteado pelo diagnóstico do Plano Estadual de Segurança Pública (Pesp), elaborado na ocasião.

Daí em diante, foi uma questão de tempo até os resultados aparecerem. Ano a ano, os índices de assassinatos foram caindo até serem os menores registrados nas últimas três décadas, em 2010. O projeto inspirou outras iniciativas pelo País e foi premiado pela Organização das Nações Unidas (ONU) e pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). A população viveu uma sensação de segurança que não percebia havia tempos.

Nesta semana, quando completa dez anos, entretanto, o Pacto Pela Vida é outro: deixou para trás as curvas decrescentes que motivavam entrevistas eufóricas de representantes do Governo e passou a ser um dos “calos” da atual gestão. Os assassinatos crescem mês a mês e, até março deste ano, já haviam ultrapassado 1,5 mil casos, patamar que, na melhor época do programa, só era atingido em maio ou junho. Desde outubro de 2016, com a assunção de Angelo Gioia, o quinto secretário de Defesa Social desde 2007, intervenções mais abrangentes passaram a ser realizadas. As chefias das polícias Militar (PM) e Civil foram trocadas e a estrutura de investigação assumiu a intenção de se voltar a grupos de extermínio. Também foram anunciados investimentos de R$ 290,8 milhões para a segurança pública, o que contemplará a contratação de mais 4,5 mil policiais até o fim de 2018.

Mas, apesar dos primeiros esforços, os resultados ainda não apareceram. E, segundo especialistas, ex-gestores e pessoas que vivem o dia a dia das polícias, não devem aparecer se, em vez de ajustes, não houver um novo Pacto. Começar do zero é necessário, na visão deles, porque o contexto atual da economia e do crime é diferente de dez anos atrás. Fazer diferente disso seria como aplicar uma fórmula desatualizada sobre uma nova realidade. “Acredito que a gente precise de uma visão tão dinâmica quanto o próprio fenômeno da criminalidade. Mas não é uma questão só do Pacto Pela Vida. Num tempo em que cidades dos Estados Unidos já estão no policiamento preditivo, com programas que tentam identificar as manchas de criminalidade do futuro, aqui, todos os programas que temos são muito voltados ao passado, baseados em modelos de pesquisa que olham para trás”, avalia o consultor em segurança pública e coordenador da área temática de segurança pública do Projeto Brasília 2060, George Dantas.

Para a formulação do Pacto, em 2007, foi feito um diagnóstico que, inclusive, indicou a necessidade de mudança na classificação dos homicídios, na época, considerada falha. Também foram identificados os locais com maior incidência de mortes violentas, incluindo o Recife e mais cinco cidades da Região Metropolitana, além de Vitória de Santo Antão, na Zona da Mata, Caruaru e Garanhuns, no Agreste, e Petrolina, no Sertão. Na descrição do professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Criminalidade, Violência e Políticas Públicas de Segurança da mesma instituição, José Luiz Ratton, havia um conjunto de atores “trabalhando por menos CVLIs” nos primeiros anos do programa. “Reunir-se toda quinta-feira não é indicativo de que o Pacto funciona. O que há são ações dispersas, que não têm produzido efeito. Não há mais pactuação. O que existe hoje não é digno de ser chamado de pacto”, declara.

Ratton teve participação decisiva na formulação do plano de segurança e contribuiu com o Governo do Estado até 2012. Hoje, é crítico dos rumos que o projeto tomou. “É preciso chamar a sociedade civil, a universidade, o Tribunal de Justiça, a Defensoria Pública e outros atores para a repactuação, e focar nas investigações de homicídios. Já chegamos a ter um DHPP [Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa] com 41 delegados e 160 agentes. Também não se pode esquecer do sistema prisional e da Funase [Fundação de Atendimento Socioeducativo], que ficaram devendo nesse período, e de uma política de prevenção. O Estado tem o Programa Atitude, consagrado, mas com uma escala insuficiente para a demanda”, elenca.

É fato que a principal vitrine do Pacto pela Vida sempre foi a redução dos homicídios, que atingiu a meta em 2010, com uma queda de mais de 12% em relação aos indicadores de 2009. Mas, nos anos exitosos do programa, gestores da área de segurança e o próprio ex-governador Eduardo Campos também se orgulhavam de iniciativas que tiveram impacto positivo sobre outras modalidades, como os Crimes Violentos contra o Patrimônio (CVP).

A reativação da Patrulha do Bairro da Polícia Militar, em 2012, foi um exemplo disso. O desafio do Pacto, de 2017 em diante, entretanto, inclui um cenário adverso e que, até bem pouco tempo, era restrito aos porões das cadeias ou ao Sudeste do País. É o crime organizado, com integrantes suspeitos, por exemplo, de participação no roubo à sede da empresa de segurança de valores Brinks, na capital pernambucana, em fevereiro.

O caso teve repercussão nacional não só pela violência da troca de tiros, em plena madrugada, na avenida Recife. Os criminosos portavam fuzis de uso restrito das Forças Armadas capazes de perfurar paredes de concreto e aço numa ação planejada, que muitos atribuem ao Primeiro Comando da Capital (PCC). Na última quinta-feira, outro caso chamou atenção, desta vez, em Tamandaré, no Litoral Sul. Depois de explodir caixas eletrônicos de duas agências bancárias e instalar uma falsa bomba num alojamento de policiais, uma quadrilha seguiu até um rio e fugiu em lanchas. Mesmo usando um meio de transporte não tão comum e sujeitos a serem encontrados numa busca feita por helicópteros, os envolvidos não foram capturados.

Polícias como a do Rio Grande do Norte já encontraram indícios de que ações contra bancos e carros-fortes no Nordeste têm sido comandadas de dentro de presídios. Com o tráfico de drogas como braço econômico, facções criminosas têm evidenciado seu poder paralelo cada vez mais nas ruas, cenário que se intensificou após o suposto rompimento de uma espécie de trégua entre o PCC e o Comando Vermelho, em 2016.

“A ação das organizações criminosas, inclusive dentro de estabelecimentos prisionais, se baseia no negócio do narcotráfico, que é inseparável do negócio do tráfico de armas. São fenômenos que não se abateram. Parece que se agudizaram nesse período e não podem ser dissociados da questão das mortes violentas. O contexto é outro. Talvez essa seja uma saída para o Pacto pela Vida: dar tanta atenção a esses fenômenos, num eventual novo diagnóstico, como a que se deu aos CVLIs no levantamento feito dez anos atrás”, orienta o consultor em segurança George Dantas.

O delegado federal aposentado Wilson Damázio foi secretário de Defesa Social entre 2010 e 2013, o período mais exitoso do Pacto pela Vida. Na condição de quem já foi diretor do Departamento Nacional do Sistema Penitenciário (Depen), ele afirma que o programa pernambucano pode não ter “dado a mesma ênfase” ao sistema carcerário, algo na linha de análises que indicam que a polícia prendeu muito, mas as vagas nos presídios não acompanharam o mesmo ritmo de crescimento. “[O Centro Integrado de Ressocialização de] Itaquitinga era uma promessa muito forte que não se concretizou. Creio que seja preciso voltar o olhar para o sistema prisional”, avalia. “Concordo que tenha que haver um recomeço. A meta de redução de 12%, por exemplo, é muito pesada. É preciso refazer o diagnóstico, reforçar o que deu certo em oito anos e abandonar o que não deu”, completa.

Programa vive esgotamento similar ao das UPPs cariocas

Assim como o Pacto pela Vida, e guardadas as devidas proporções, a política de Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs) nas comuni­­da­­­des do Rio de Janeiro também perdeu efetividade. Trafi­­­cantes reassumiram o controle de vários pontos, e, nos confrontos com policiais, vidas têm se perdido. Os fenômenos teriam semelhanças? Políticas de segurança teriam prazo de validade?

Para o sociólogo José Luiz Ratton, não é uma questão de data para a perda de efeitos, mas, sim, do desmonte do que havia sido traçado. “Mudanças de um realidade histórica, como a de Pernambuco, no que se refere aos crimes violentos, não ocorrem em apenas oito anos. Se houve uma perda de efetividade do programa é porque ações foram descontinuadas. No Rio, também houve uma interrupção de processos que pareciam promissores.”

O número de homicídios voltou a subir em 2014, no início da crise econômica. Esse cenário costuma ser apontado por governantes como influenciador do crescimento da criminalidade. “Remeto-me ao conceito de que a diminuição da oferta de emprego pode tornar a prática de delitos mais atraente a determinados segmentos da população. Criar condições de saúde econômi­­ca e social que leve essas pessoas a negarem o crime é o desafio”, diz o con­­sultor George Dantas. “A velha fórmula que prevê mais policiais e viaturas parece ser inviá­­­vel no atual cenário econômico. É preciso investir em inteligência policial”, diz.

No aporte de R$ 290,8 milhões anunciado pelo Governo de Pernambuco para a segurança pública, também é contemplada a renovação de viaturas e outros equipamen­­­tos. Nos últimos dias, foi divulgada ainda a criação do Batalhão de Operações Especiais (Bope), com policiais ganhando mais gratificações. “Não adianta criar mais uma tropa reativa, sem foco em preven­­­­­­ção. Não acho que faltou dinhei­­­ro ao Pacto, mas é preciso gastar com qualidade, com boa aplicação do policiamento ostensivo nos pontos vulneráveis”, completa Ratton.

Desde dezembro de 2016, quando foram retiradas da mesa de negociações salariais para policiais e bombeiros militares, associações da categoria também subiram o tom das críticas ao Governo e iniciaram uma operação padrão que diminuiu o policiamento nas ruas. “Hoje, a PM do Rio está sem investimentos, e a UPP, sem força. Aqui, a tropa está desmotivada. A sociedade é que paga um preço al­­­to”, diz o vice-presidente da Associação de Cabos e Soldados, Nadelson Leite.

Outro norte para o Pacto pela Vi­­­da é a necessidade de integração com ações federais, um desafio evi­­­denciado, por exemplo, quando se percebe que, nos dez anos do pro­­­jeto pernambucano, quatro planos nacionais de segurança já foram lançados, com pouca efetividade. “É preciso criar fontes de recursos. Investir em segurança tem que ser sagrado. Temos que tra­­­balhar juntos, manter a chama viva da inteligência e integração policial. Não pode ser uma mera troca de informações. Tem que ser institucionalizado já nas academias”, avalia o ex-secretário de Defesa Social, Wilson Damázio.

Folha de Pernambuco

Foto: Anderson Stevens/Arquivo Folha

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