Em edição trilíngue, a narrativa traz uma enredo sombrio e quase premonitório sobre o autor, que morreria no mesmo ano de sua publicação
Osman Lins nasceu em Vitória de Santo Antão, em 5 de julho de 1924 |
Uma das raras novidades editoriais da produção de Osman Lins neste ano é o lançamento de uma edição trilíngue do seu último texto, a novela Domingo de Páscoa, escrita em 1978 e publicada na revista Status. A narrativa, antes inédita em livro, sai pela Editora UFSC, com organização de Ana Luiza Andrade, pesquisadora da obra do autor. Além do texto original, o volume conta com artigos crítico da viúva do escritor, Julieta de Godoy Ladeira, já falecida, de Ana Luiza e de Fred P. Ellison, todos vertidos também para o espanhol e o inglês.
“Trata-se de uma ‘novela’ enigmática em seus questionamentos. E parece-me que ele se interroga novamente sobre o seu ofício na conjuntura cultural que o cercava então, iluminando criticamente o caminho da arte no mundo atual”, opina a organizadora. A narrativa se passa em uma praia do Espírito Santo, inspirada em uma viagem do próprio autor com Julieta. No texto, um enfermeiro particular acompanha sua paciente em um tratamento nas terras curativas da região, enquanto observa a figura de um estrangeiro misterioso e sente o espectro da morte ao redor do seu hotel.
No prefácio da novela, Julieta destaca como a narrativa parece ter sido um presságio do futuro do autor pernambucano – principalmente porque ele morreria no ano da sua publicação. “Poucos escritores se deram tanto e tão profundamente à sua arte a esse ponto, o de um envolvimento em que de certo modo os fatos literários, criados através de uma busca tão intensa, de tão grande entrega, fossem em alguns casos se cumprindo, depois, na realidade vivida pelo autor”, afirma a escritora. A metáfora de um homem acometido até mesmo fisicamente pela própria literatura é perfeita para Osman, que parece ter vivido fora das palavras.
Leia um trecho de Domingo de Páscoa:
As longas tábuas ensolaradas do piso cheiram a cedro e cera. Vem do banheiro esse perfume que sentimos ao atravessar um pinheiral e o ar marítimo agita as cortinas florosas em ondas lentas como que se desfazem lá embaixo, inaudíveis, molhando a exígua praia ainda fresca e os pés dos velhos. Eles desfilam, quase sempre aos pares, os cotovelos um pouco levantados, ou sentam-se no chão, pernas estendidas, cobrem as juntas com a areia negra e com a argila viscoca, ocre, sempre renovada pelo mar. Somadas, suas idades espantam, eles em conjunto um ancião monstruoso, várias vezes milenar, observando furtivos, com nostalgia, cobiça e vontade de cuspir, meu torso musculoso, meus inconcebíveis quarenta e quatro anos. Fragrâncias de loções, de pós e de cremes de beleza mesclam-se ao pérfido aroma do assoalho, infestado do ruflar de asas e de escamas deslizando: espectros de pássaros e de répteis. Só uma hóspede, o corpo lustroso de óleo, se expõe ao sol junto à piscina, numa cadeira reclinável.
Informações do jornal do Commércio