Obra, uma das mais importantes da prosa brasileira, tem estrutura complexa e inovadora, mas é pouco celebrada atualmente
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Nascer um prosador em uma terra de poetas iria marcar a ironia da obra do escritor vitoriense Osman Lins (1924-1978), talvez o maior nome da literatura pernambucana depois de Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto. Nome reconhecido pela crítica internacional, o criador de obras como Nove, novena ainda hoje é pouco lido na sua própria terra, quase ignorado por novas gerações. No ano que sua maior obra-prima, Avalovara, completa 40 anos do seu lançamento, o incômodo é ainda maior: continuamos a desviar os olhos de uma das prosas mais fortes já produzidas no Brasil.
É só pensar no próprio Avalovara – o ponto principal de equilíbrio entre o seu experimentalismo formal e a preocupação com as questões humanas – para entender a revolução que a obra significa. O romance traz o personagem Abel e a história de três mulheres de sua vida, relacionadas a cidades como Recife, São Paulo, Amsterdã e Roma Antiga, e tem figuras singulares, como o pássaro feito de pássaros que nomeia a obra.
A trama parece simples ou, ao menos, não tão radical assim. É a sua união a experiência (mais do que experimento) radical de narrativa que faz deAvalovara o romance que o argentino Julio Cortázar disse que, se tivesse escrito, passaria 20 anos sem tentar criar outra obra. A partir do palíndromo em latim “sator arepo tenet opera rotas” (com vários sentidos, sendo um deles algo como “o lavrador sustém cuidadosamente o mundo em sua órbita”), ele cria uma narrativa que funciona a partir da inscrição de um espiral em um quadrado, que possibilita inúmeras leituras das frase.
Essa estrutura não é um detalhe. Como aponta a professora de Letras Leny da Costa Gomes, da Universidade de Brasília, o próprio Osman ressalta o papel dessa organização no romance: “Quando, em Avalovara, me ocupo do romance, da organização do romance, ocupo-me do mundo, da transição do caos ao cosmos”. Segundo ela, a obra reflete essa busca pela ordenação do caos. “Esse processo de organização, que é de contínua interação, também gera a dispersão, formando um movimento espiralado; portanto, aberto, sem início nem fim”, defende.
Avalovara foi lançado dez anos depois de o de outro romance de forma radical:O jogo da amarelinha, de Cortázar, que traz vários caminhos de leitura. “Em um certo sentido, Avalovara é até mais ambicioso. O romance é um ápice de uma obra que, desde o início, conseguiu unir experimentalismo formal com uma atenção às questões humanas fundamentais. Ele é sobre grandes temas, como a incomunicabilidade e o papel do amor e da morte”, aponta o poeta e professor da UFPE Fábio Andrade, que fez sua dissertação de mestrado sobre a obra.
Para o pesquisador, no entanto, a semelhança entre os livros se limita a essa invenção formal. “Na escrita em si, eu vejo diferenças. Cortázar tem uma linguagem que corre; Osman tem uma prosa estacada, mais pontual”, descreve.
Um dos maiores críticos literários brasileiros, Antônio Cândido se rendeu ao livro. “O que desde logo prende em Avalovara é a poderosa coexistência da deliberação e da fantasia, do calculado e do imprevisto, tanto no plano quanto na execução de cada parte”. Desde esse depoimento, no prefácio do livro, o romance publicado há 40 anos mostra que não se sustenta apenas pela estrutura: há uma invenção na narrativa e na linguagem também.
O professor da UFPE Lourival Holanda, organizador de três volumes de contos de Osman Lins, destaca também o controle da linguagem do autor, um “romântico com cabresto”. Para ele, a modernidade de Osman vem daí e, apesar de alguma semelhanças com os jogos e as restrições que movimentavam os autores do grupo OuLiPo, como Georges Perec e Raymond Queneau, vai além. O pernambucano, ele ressalta, “tem uma atitude crítica com relação á linguagem; não ‘cede’ à expressão: antes, luta com ela”. “Nove, novena eAvalovara são os dois momentos mais altos da produção dele”, afirma.
O escritor pernambucano Raimundo Carrero entende que a obra pertence a um cânone privilegiado da literatura. “Avalovara é um livro maior não para o Brasil, mas para a humanidade. É do tamanho de Grande sertão: veredas, Dom Casmurro e O romance d’a Pedra do Reino”, define. Fábio Andrade lembra que, quando o livro foi lançado na França, foi considerado um dos três ou quatro melhores traduzidos na década.
Por aqui, ele ressalta, apesar de Avalovara ter sido considerado “difícil” pela crítica, foi um dos livros mais vendidos do Brasil em 1973, quando foi lançado. O reconhecimento veio por nomes grandes da crítica literária da época, como Antônio Cândido e João Alexandre Barbosa, mas o romance também foi muito incompreendido. “Queriam encontrar em Avalovara um livro explicitamente contra a ditadura, mas ele era muito mais do que isso”, diz o pesquisador.
Um dos fatos que mostra Avalovara como uma obra viva é o projeto Uma rede no ar – Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins. Na página, é possível acompanhar vários percursos da principal narrativa de Osman. Segundo a professora Leny da Costa Gomes, um dos nomes a frente do projeto, a proposta era fazer um levantamento dos elementos arquitetônicos, artísticos e intertextuais da obra. “A ideia era transformar os dados em um sistema hipertextual, que possibilitasse a navegação por links em contínuo processo de alimentação, que poderia ser feito pelos leitores”, conta.
O que impede uma maior circulação do romance hoje, para Fábio, é a falta de textos críticos e professores capacitados.“O valor do romance assusta um pouco, exige que quem se aproxime dele se comprometa. Não dá para fazer uma leitura acadêmica rasa”, atesta o pesquisador. A experiência de leitura de Avalovara continua disponível, 40 anos depois, para quem quiser mergulhar nos seus abismos.
Informações do Jornal do Commércio