A Hecatombe da Vitória, 141 anos de uma tragédia política

*Por Cláudia Vicente

Muito embora o significado histórico da palavra Hecatombe esteja ligado ao sacrifício de reses na Grécia Antiga, Vitória de Santo Antão, num passado não muito distante, quando o nome do santo ainda não carregava, mas a quem a este já pertencia por desejo de seu fundador, foi palco de um episódio violento na história política do II Império. Neste texto, de forma muito pontual iremos apresentar os fatos acontecidos na cidade em 27 de junho de 1880.

 O cenário político na província de Pernambuco encontrava-se bastante instável, a divergência de interesses entre os membros do Partido Liberal ocasionou a divisão do grupo em duas correntes: os “Leões e Cachorros”. Que tinham esses codinomes relacionados aos seus principais representantes:  Leões era o grupo liderado por José Felipe Souza Leão e os Cachorros por José Epaminodas de Melo.

Na história, nada se dá como coisa em curso, os acontecimentos sofrem influências diretas ou indiretas do seu entorno, portanto, consideramos a disputa interna do Partido Liberal na Capital da província de Pernambuco como um ponto chave para entendermos os desdobramentos que se seguem em Vitória no ano de 1880.   Convém mencionar que muito embora na cidade predominasse a corrente democrata, houve um agravante: a ala dos dissidentes estava inconformada com os resultados das eleições para senador que tinha acontecido em março daquele ano.

Acontece que José Felipe Souza Leão possuía forte influência na cidade devido as amizades estabelecidas durante o tempo em que exercera a função de juiz. Uma dessas amizades era a do juiz Nicolau Rodrigues da Cunha Lima, advogado do partido, integrante da ala dos Leões e principal articulador do conflito armado.

A medida em que se aproximava as eleições para vereadores e juízes de paz, os boatos já aterrorizavam a todos. Contava-se a bocas miúdas, que o Conselheiro José Felipe e outros integrantes da corrente denominada “leões” haviam de se vingar dos integrantes da corrente denominada “cachorros” de modo especial do seu chefe Ambrósio Machado, bem como o do Partido Conservador major Manoel Cavalcanti de Albuquerque Sá.

O clima e todo preparativo para o conflito passam a ser delineados diretamente quando em 02 de junho foi nomeado comandante do destacamento o capitão Ursulino Torreão. Sua nomeação agravou ainda mais a situação, uma vez que o mesmo era acusado de possuir posicionamento partidário e agir com parcialidade no tocante a política. Diante de toda animosidade existente, em 19 de junho foram enviadas do Recife um grupo de dezenove ou vinte praças de polícia para quando o embate eclodisse. Porém, no dia 20 por ordem do governo foi solicitado que fossem retirados todos os praças que se encontravam na localidade.

No dia 26 de junho, a cidade já se encontrava assustada pelas perspectivas aterrorizantes que o clima eleitoral criou. Como era característico desse período as eleições aconteciam dentro das igrejas, já que efetivamente a separação entre religião e estado se deu apenas com a proclamação da República em 1889. A igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos tendo sido local escolhido para realização do pleito foi invadida durante a noite, além de ter suas portas arrombadas foi ocupada em locais estratégicos.

Nas horas finais da tarde do dia 27, os chefes dos Partidos Conservador e Democrata (Ala dos ‘’cachorros’’ na cidade), juntamente com seus amigos e correligionários, a cavalo e a pé, chegaram ao pátio da matriz do Rosário, que, por essas horas, já se encontrava ocupado pela força pública. Em frente à, igreja estavam o delegado Ursulino Torreão, o juiz municipal Dr. Nicolau Lima, além do capitão Tiburtino; à frente da linha de paisanos, que se encontrava aquartelada na praça, estava o tenente Cristóvão Álvares dos Prazeres. Ao se aproximarem Ambrósio Machado e seu cunhado Belmiro da Silveira Lins – o Barão da Escada, e outras pessoas que os acompanhavam na passeata, teve início uma enérgica e calorosa discussão.

Após breves indagações ao delegado, o doutor Ambrósio Machado conseguiu entrar no interior da igreja, que estava completamente ocupada. Imediatamente, dois tiros foram ouvidos, acompanhados de uma descarga de fuzilaria. No intuito de proteger-se, já que se encontrava desarmado, o dr. Ambrósio abaixou-se, no entanto, por essa hora já havia sido ferido. Igualmente machucado, à porta da igreja, veio a óbito o Barão da Escada, como se verifica na prova testemunhal produzida pelo inquérito policial.

Consta, segundo o mesmo auto do corpo de delito, terem sido assassinadas e feridas as seguintes pessoas:

“Barão da Escada, José Pedro de Oliveira, José Leite dos Santos, Alexandre Ferreira Rodrigues Luna, Antônio Faustino do Rêgo, Manoel João Quino, Benedito de Tal, Laurentino de Tal, Firmino de Tal, Felipe de Tal, José de Tal; Tertuliano de Tal, Agostinho de Tal e Pedro Cavalcanti de Albuquerque Sá, vulgo doutor Pedro, e feridos gravemente os seguintes: doutor Ambrósio Machado da Cunha Cavalcanti, Francisco de Sá Cavalcanti Lins, Manoel Vicente de Queiroz, Manoel Felix Pedroso, Antônio Feliciano dos Anjos, Manoel Paz da Silva, João Francisco de Albuquerque, Luiz Maria da Silva, Antônio Lucas do Nascimento, João Antônio da Silva, Antônio Zacharias Lins, Antônio Rodrigues de Moura, João Manoel Leite dos Santos, João Borges dos Santos, Manoel Francisco do Nascimento, e Firmino Rodrigues Dias, e este veio a falecer no dia dez do corrente, como se vê do exame cadavérico que se acha junto do inquérito. Todos estes, quer mortos, quer feridos, eram do grupo ou parcialidades do doutor Ambrósio Machado. Do lado da força e dos que a ela se achavam incorporados, encontram-se mortos dois soldados, um de nome José Esteves da Silva e outro de nome Roque José Gonçalves, e foram feridos, como consta dos corpos de delito, o capitão Antônio de Paula Cavalcanti de Almeida, o cabo Amaro da Costa Soares e o soldado Severino Rodrigues da Silva; aqueles levemente e este gravemente ferido”.

Observa-se com isso que a investida contribuiu para um desfalque muito maior do grupo dos cachorros do que com relação ao grupo dos Leões. Quanto ao desfecho do conflito, consideramos os seguintes pontos: Apurados os fatos, que se encontram nos autos do corpo de delitos, decidiu a promotoria pública, optando por proceder de acordo com os artigos noventa e dois e duzentos e cinco, do código criminal do Império, nos termos de formação de culpa a serem punidos os denunciados.

 Arrastando-se por seis longos anos, o desfecho do processo não teve o fim esperado. Foram absolvidos os principais envolvidos no conflito como podemos observar: “[…] Dos que foram submetidos a julgamento pelo Tribunal do Júri, em datas diferentes, apenas o Cabo Amaro da Costa foi condenado a galés perpétua. Os demais foram absolvidos, tendo havido apelações, que não tiveram provimento”. Vale salientar que este foi um caso de grande repercussão dentro e fora da província. Logo, havia necessidade de responsabilizar alguém, era necessário satisfazer os clamores sociais.

Mais de um século separam-nos daquele fatídico dia, entretanto, ainda hoje observamos semelhança nas formas e no modo de disputas políticas no munícipio. As competições continuam dividindo a cidade em grupos rivais, e os principais partidos revezam-se constantemente no poder. Michel de Certeau em seu famoso a Escrita da História, discorre sobre a importância de entendermos a História como algo que vai além da prática interpretativa, caracterizando-a como uma ferramenta de prática social.

Nesta microfísica do poder, as relações de mando e desmando eternizam-se no munícipio, isto é bastante evidente se fizermos um breve levantamento sobre quem esteve e ainda detém poder político na cidade. Da Hecatombe do Rosário aos dias atuais os mecanismos de dominação ainda persistem, este episódio serve-nos para entendermos a cidade da Vitória nos idos dos oitocentos, como também, a instabilidade política na província de Pernambuco e o Segundo Império no Brasil.

*Professora, graduada em História, especialista em Educação e mestranda em Educação

Foto: Danilo Coelho – Imagens da Igreja do Rosário no Museu Sacro do Instituto Histórico da Vitória

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