Cenário era devastador no dia seguinte à grande enxurrada: comerciantes tiveram prejuízos e famílias perderam o que tinham. A maior enchente da história de Vitória ficou memorizada na vida de quem presenciou.
[Publicada em junho de 2020, republicada em 2022]
A chuva leve que caía no início da noite do dia 1º de junho sequer parecia presságio para um dos maiores estados de calamidade pública vivenciados pelos moradores de Vitória de Santo Antão, na Zona da Mata do Estado. O temporal brando ganhou força durante a madrugada e se estendeu durante todo o dia e a noite de 02 de junho, ocasionando a maior enchente da história do município, 30 anos depois do cenário atípico de 1975, na primeira grande cheia registrada na cidade.
A forte chuva que aquele temporal havia se transformado acendia um sinal de alerta pela manhã daquela sexta-feira, principalmente para a geração que viu de perto a cheia de três décadas atrás. Os mais jovens e mais céticos, até certo ponto, contemplavam os ‘braços de água’ que mediam forças com os pilares de sustentação das pontes, mas logo se deram conta que a situação estava fora do controle.
O autônomo Décio de Souza Oliveira, hoje com 29 anos, foi uma das pessoas que saiu de casa para ver a correnteza incomum que passava pelo Rio Tapacurá. Segundo ele, por volta das 10 horas da manhã os dois lados da Ponte do Dique foram fechados pelo Corpo de Bombeiros, porque o nível rio continuava a subir intensamente e era possível o risco da ponte ter a estrutura danificada.
“Acordei cedo para ver o rio aqui no Dique e já tinha um pessoal olhando a correnteza do Tapacurá, admirando a força da água que arrastava lama e vegetação, mas foi muito rápida a inundação. A tubulação dos banheiros deram os primeiros sinais porque a água começou a sair pelos ralos, já que a rede de esgoto estava inundada, então a água precisava escoar”.
15 anos depois, o radialista Jota Santos recorda que tomou ciência da gravidade da enchente enquanto estava no ar pela Rádio Cultural AM da Vitória. Apresentador de um programa matinal na época, o comunicador diz que recebeu os primeiros relatos de inundação através de parentes. “Ligaram pra mim avisando que a água já tinha chegado em alguns pontos. Depois do programa, corri pra casa de minha mãe porque a água estava entrando na residência dela. Não parava de chover, um dia inteiro, a madrugada inteira e a cidade estava um caos”, relembra.
O cenário também foi caótico no dia seguinte, ressalta o radialista. “Eu lembro que as pessoas andavam pelas ruas como se estivessem sem entender o que tinha acontecido. Na Avenida Mariana Amália tinha muita lama e não passava nenhum veículo. Ficou uma cidade intransitável”.
Carlos Oliveira, repórter da TV Vitória, cumpria mais uma jornada de trabalho quando se viu na missão de cobrir a enchente. Após a passagem das fortes chuvas, num voo rasante de helicóptero na manhã do dia 3 de junho, à convite do então prefeito José Aglailson, Carlos Oliveira e o cinegrafista Joás Silva foram os primeiros a entender a dimensão do sinistro que assolou a cidade. De cima, viram casas destruídas no bairro de Doutor Alvinho, ruas repletas de entulhos em meio à lama e o comércio destruído. “Foi um prejuízo de milhões para os comerciantes. O Corpo de Bombeiros e o Exército salvaram muitas pessoas que correram pros telhados para não morrerem afogadas”.
Meses depois, Carlos precisou voltar às localidades atingidas pela enchente para gravar entrevistas para o seu documentário. As narrativas do material produzido são unânimes sobre os prejuízos provocados pela catástrofe. “Aquele dia ninguém esquece. Além de perdermos clientes e mercadorias, nosso prejuízo foi numa faixa de cem mil reais”, disse na época o empresário Manoel Cruz, dono de um supermercado.
Naquele dia que José Sebastian classificou como “emocionante”, ele sentiu de perto o que era uma família perder tudo e não poder fazer nada. O repórter da Rádio Vitória FM entendeu que teve que controlar as emoções para poder noticiar o que via, além de ficar ilhado no meio da cidade, pois os acessos a sua casa estavam obstruídos pela forte correnteza.
Em diversas tentativas de descansar após um fadigante expediente, Sebastian conseguiu ir para casa se arriscando pela Ponte de Gaiola, uma das mais altas da cidade. Lá, conta o comunicador, “a água batia nos trilhos da estrutura e mesmo assim pessoas se arriscavam a pular no rio”.
“No dia seguinte eu perdi a noção do que tinha noticiado, fiquei desnorteado com aquele cenário, com o que vi. O mais impressionante foi ver os funcionários da Caixa Econômica saírem de bote do local. Os funcionários da prefeitura também fizeram o que estava sob o alcance para ajudar as pessoas”, destaca Sebastian.
A grande cheia de 2005 provocou mudanças nas vidas de moradores de várias partes da cidade. As pontes do Galucho e do Alto Nossa Senhora do Amparo, por exemplo, tiveram parte da estrutura levada pela correnteza e levaram dias para serem recuperadas. Comunidades de áreas ribeirinhas tiveram que ser abrigados em escolas municipais, como o Colégio Municipal 03 de Agosto, ou na casa de parentes e amigos.
Mesmo se recuperando de um acidente de motocicleta, o autônomo Roberto Gomes, morador de Vitória desde 1999, percorreu vários bairros para ajudar as pessoas. Ao lado de colegas da Igreja Episcopal, uniu os esforços para doar roupas e comida para a população. “Em muitos lugares, não tinha energia elétrica. Levamos lanternas, ligávamos os faróis dos carros e gritávamos anunciando a chegada da sopa que fizemos para distribuir”, afirma.
“Ele trocou sua vida pela minha”, recorda bombeiro
Enquanto a cidade era engolida pela água, a central do Corpo de Bombeiros de Vitória recebeu um chamado para uma ocorrência na BR-232, em Jaboatão dos Guararapes, na Região Metropolitana do Recife. Dois soldados que estavam de serviço recebiam a missão de resgatar corpos de uma lotação que saiu de Jatobá, no Sertão do Estado e voltava do Recife depois de uma consulta médica.
A situação, no entanto, foi mais ampla do que a relatada no primeiro contato com a equipe de socorro. Os bombeiros se viram diante de um cenário de 17 índios das tribos pancararu e da etnia aticum mortos. A van em que trafegavam rodopiou na pista e caiu no Riacho Dois Unidos. Apenas o índio pancararu, Alfredo Gomes da Silva, de 47 anos, sobreviveu.
Adonai era um dos soldados que estava na ocorrência. Ao lado de Mário Antônio, seu colega de turma no curso de formação, planejou a retirada dos corpos, mas eles não contavam com um problema de última hora: a corda que sustentava Adonai se rompeu.
Mário foi informado sobre o problema com o companheiro de farda e mergulhou para prestar auxílio. “Fiquei lá sendo jogado de um lado pro outro…por vezes perdia a válvula de respiração. Ao me encontrar, foram várias as tentativas para sairmos daquele local, pois a corda de segurança dele [eu acho que] enganchou. Todas vezes que éramos puxados, batíamos a cabeça na van, em pedras”, relata o bombeiro.
Mário, recorda Adonai, perdeu a válvula de ar que carregava em um desses impactos. Mesmo sem visibilidade devido à água turva, Adonai relembra que foram lançados para a margem do rio e só nesse momento se deu conta que seu amigo de farda apresentava uma lesão na altura do rosto. Ambos foram socorridos para hospitais diferentes, só que Mário não resistiu e morreu.
15 anos depois, os acontecimentos daquela ocorrência ainda são relembrados por Adonai, que recorda da tentativa heroica do seu colega de corporação de tentar salvá-lo. “Agradeço a Deus pelo livramento e a meu amigo e irmão Mário, que trocou sua vida pela minha, à minha família, de onde busquei forças quando estava lá embaixo quase morto. A todo instante, clamei a Deus para que não me deixasse morrer, pois tinha a minha mulher e minha filha, que não estavam preparadas para me perder aquele dia.
Foto de capa: Reprodução/YouTube/Sérgio Lima
Por Marcio Souza e Danilo Coelho, especial para o Blog Nossa Vitória.