O processo de reconhecimento como santo do religioso brasileiro dom Helder Pessoa Câmara (1909-1999) entrará em nova etapa na semana que vem. Trata-se da abertura da fase romana das investigações. A morte do cearense com forte atuação em Pernambuco completa 20 anos nesta terça (27).
“O próximo passo será o papa reconhecer, em nome da Igreja, que dom Helder praticou em grau heroico as virtudes cristãs. Aí ele será declarado venerável”, disse à Folha Jociel Gomes, frade franciscano responsável por realizar o pedido junto ao Vaticano. O processo de canonização de dom Helder foi aberto oficialmente em fevereiro de 2015, nove meses depois de a Arquidiocese de Olinda e Recife solicitar a questão à cúpula da Igreja. Desde então, frei Jociel e sua equipe vasculharam sua biografia e ouviram pessoas que conviveram com o religioso. O resultado, enviado ao Vaticano em dezembro, foi um dossiê de 197 páginas, com depoimentos de 54 pessoas.
Se dom Helder for considerado venerável, relatos de milagres passam a ser compilados. Os casos selecionados são analisados por um junta de especialistas do Vaticano. Para se tornar beato, é preciso ter um primeiro milagre reconhecido pela Igreja. A canonização, ou seja, o status de santo, só vem após um segundo milagre.
Neste ano, a freira baiana Irmã Dulce teve a sua canonização anunciada pelo Vaticano e será a primeira mulher nascida no Brasil e a se tornar santa. A cerimônia será em outubro.
Décimo primeiro filho de um jornalista e de uma professora primária, dom Helder entrou para a vida religiosa em 1923, aos 14 anos, no Seminário da Prainha, instituição católica de sua cidade natal, Fortaleza. Foi ordenado padre aos 22 anos. Ainda jovem, envolveu-se com causas sociais. Coordenou os chamados círculos operários cristãos e liderou a Juventude Operária Católica. Dedicou-se a atividades de lazer e alfabetização de jovens sem acesso à formação.
Também fundou, em 1933, a Sindicalização Operária Feminina, organismo que lutava por direitos de empregadas domésticas e lavadeiras. Convidado pelo escritor e político Plínio Salgado (1895-1975), ingressou no grupo conservador e nacionalista Ação Integralista Brasileira. Foi considerado o maior propagandista do tema no Ceará. Contudo se desiludiu rapidamente com o movimento, considerado de extrema-direita. Ao fim da década de 1930 se autodefinia como humanista integral e democrata cristão.
Dom Helder teve papel importante durante a Segunda Guerra Mundial. Fundou a Comissão Católica Nacional de Imigração e trabalhou para acolher refugiados que chegavam ao país. Tornou-se bispo aos 43 anos, em 1952. No mesmo ano, conseguiu a aprovação do Vaticano para criar a Conferência Nacional do Bispos do Brasil, a CNBB.
A partir de então passou a se dedicar a causas como a Cruzada São Sebastião, que resultou em conjuntos habitacionais para moradores de favelas, e o Banco da Providência, para atender aos sem renda. Participou ativamente das quatro sessões do Concílio Ecumênico Vaticano 2º, nos anos 1960, e foi um dos proponentes do Pacto das Catacumbas, em que 42 sacerdotes de todo o mundo se comprometeram a assumir atitudes com o objetivo de reduzir a pobreza global.
O documento é considerado o embrião da Teologia da Libertação, corrente cristã que determina assumir “a opção preferencial pelos pobres”. Dom Helder tornou-se arcebispo de Olinda e Recife em 1964. Foi um período de forte envolvimento com causas sociais, e ele se tornou um contraponto à ditadura militar.
Incentivou e fortaleceu as comunidades eclesiais de base e foi alçado ao posto de resistência ao regime. Passou a ser visto como líder na defesa dos direitos humanos. Foi acusado de comunista, chamado de “arcebispo vermelho” e perseguido pelos militares, sobretudo depois do Ato Institucional nº 5.
Sua atuação leva a inferir que a eventual canonização, em um período como o atual, possa ser utilizada de forma política. Dom Helder foi um dos interlocutores da família de Fernando Santa Cruz, militante de esquerda desaparecido durante o período da ditadura e alvo de recente ataque do presidente Jair Bolsonaro.
Frei Jociel, no entanto, descarta o uso político. “Dom Helder foi um homem altamente coerente com a doutrina social da Igreja, um homem profundamente evangélico no sentido de que colocou em prática a opção preferencial pelos pobres e a busca da justiça e da paz”, afirma. Em uma de suas frases famosas, dom Helder disse: “Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo; quando pergunto por que eles são pobres, chamam-me de comunista”.
“O discurso fajuto atual que diz que aquele que busca uma sociedade melhor é comunista é completamente anacrônico”, diz frei Marcelo Toyansk Guimarães, da Comissão Justiça, Paz e Integridade da Criação dos Frades Capuchinhos do Brasil. Dom Helder nos ilumina como aquele que defende os direitos humanos, o direito à vida, o direito dos pobres em um momento difícil.”
Para o religioso brasileiro Reginaldo Roberto Luiz, padre que trabalha com processos de canonização no Vaticano, o envolvimento político de dom Helder deve exigir um maior detalhamento nos pareceres da canonização. “Trata-se de uma figura muito controversa da política. Isso precisará ser esclarecido durante o processo”, diz. “[A canonização] vai demorar porque certamente será um processo muito detalhado para explicar e esclarecer, minuciosamente, a sua biografia.”
À reportagem da Folha de S.Paulo ele comparou o caso com o do arcebispo de San Salvador (El Salvador) Óscar Romero (1917-1980), canonizado em 2018. Há semelhanças: Romero também lutou contra a ditadura em seu país e era adepto da Teologia da Libertação. “Mas ele foi mártir -o que é uma ‘vantagem’ em processos de canonização”, ressalta Roberto Luiz. Romero foi assassinado por um atirador de elite do exército salvadorenho enquanto celebrava uma missa.
Dom Helder realizou diversas viagens ao exterior para denunciar os abusos da ditadura brasileira. Isso lhe rendeu títulos honoris causade universidades de 32 universidades estrangeiras. Também foi indicado quatro vezes ao Nobel da Paz. Em 2017, foi declarado Patrono Brasileiro dos Direitos Humanos, em lei federal. “Dom Helder dedicou toda a sua vida à defesa da vida e da dignidade dos mais pobres. Convocou toda a sociedade para uma ação não violenta em favor da justiça e da paz”, diz Marcelo Barros, 74, monge beneditino e biógrafo de dom Helder Câmara.
Folha de Pernambuco