O uso político de emissoras de rádio no Brasil é quase tão antigo quanto o próprio rádio. Nas eleições presidenciais de 1930 – apenas oito anos após a primeira transmissão experimental realizada no País, em comemoração ao centenário da Independência –, a Rádio Educadora Paulista de São Paulo já era utilizada como ferramenta de campanha por um dos seus associados, o governador de São Paulo, Júlio Prestes. Ainda que vencedor das eleições, Prestes jamais tomaria posse devido à revolução liderada por Getúlio Vargas – outro que usaria intensamente o rádio como ferramenta de propaganda política nos 18 anos em que permaneceu no poder.
Vieram depois a ditadura militar e a Nova República, que intensificaram ainda mais o uso político da radiodifusão, especialmente por meio de outorgas destinadas a políticos. Hoje, quase 100 anos depois da inauguração do rádio no Brasil, ao menos 40 emissoras de rádio e TV ainda são controladas por senadores ou deputados federais.
Mas se, no nível nacional, a grande presença de políticos entre os proprietários de meios de comunicação é ao menos denunciada, pelo fato de desrespeitar diretamente um artigo constitucional, no nível municipal a prática, ainda mais evidente, se banalizou.
Nas últimas eleições municipais, em 2016, exatos 216 proprietários de emissoras locais de rádio (FM) se candidataram a prefeito. Desses, 94 saíram vencedores nas urnas (veja lista completa). Entre os eleitos, alguns são conhecidos “coronéis” da mídia: ACM Neto, eleito em Salvador (BA) e proprietário, entre outras, da Rádio 90.1 FM (Globo); Humberto Souto, deputado federal por sete mandatos, atual prefeito de Montes Claros (MG) e controlador da Rádio Educadora de Montes Claros; e Walter Caveanha, que ocupa pela quinta vez a Prefeitura de Mogi Guaçu (SP) e é sócio da Rádio e TV Vale do Mogi Guaçu.
A maior parte dos prefeitos radiodifusores eleitos em 2016, entretanto, é composta por novos investidores no setor, que encontraram na apropriação de licenças de radiodifusão comunitária um novo filão para construir seus palanques eletrônicos.
Rádios locais e o coronelismo eletrônico de novo tipo
Dos 94 prefeitos proprietários de rádios atualmente no cargo, 76 (80,85%) são membros da diretoria de alguma rádio comunitária. Essa modalidade de radiodifusão, criada em 1998 para se tornar uma alternativa ao modelo comercial, foi rapidamente dominada por políticos com atuação local, que perceberam o potencial de ganho eleitoral que poderia ser conquistado com essas outorgas.
A primeira menção a esse fenômeno, batizado de “Coronelismo Eletrônico de Novo Tipo”, surgiu em 2007, em estudo que Venício A. de Lima e eu publicamos no Observatório da Imprensa. À época, constatamos que mais da metade das rádios comunitárias do País possuía algum tipo de vínculo político.
Hoje, com base em novos dados que acumulei para a construção da minha futura tese – que deverá ser defendida no início do ano que vem no IESP/UERJ –, o que se pode observar é que não apenas rádios comunitárias, mas também rádios comerciais e educativas continuam sendo intensamente utilizadas como palanque nas eleições municipais – embora o domínio das estações comunitárias nesse quesito seja evidente.
Em tempos de ampliação do acesso à internet e de intenso uso das redes sociais como instrumentos de marketing político, chama a atenção a persistência da utilização do velho rádio como ferramenta política. Também é impressionante a grande prevalência de políticos entre os proprietários dessas rádios – ainda que a legislação proíba explicitamente a instrumentalização dessas emissoras, em especial das rádios comunitárias, para a prática de proselitismo político.
Porém, o maior perigo para a democracia é o fato de que a propriedade de emissoras locais de rádio parece ser um fator que amplia significativamente as chances dos seus proprietários serem eleitos nas eleições a prefeito.
Levando em conta as eleições de 2016, a taxa de sucesso dos candidatos proprietários de rádios locais foi de 43,5%. Já na população em geral, segundo dados do TSE, 5.463 prefeitos foram eleitos nas eleições ordinárias de um total de 15.803 candidatos aptos. Portanto, entre todos os candidatos, a taxa de sucesso foi de 34,6%. Ou seja: a propriedade de rádios locais desequilibra de maneira intensa os pleitos municipais, ampliando bastante as chances de um candidato radiodifusor vir a se eleger. O simples fato de possuir a outorga de uma rádio FM fez com que esses candidatos aumentassem em 25,8% as suas chances de serem eleitos nas últimas eleições municipais.
E, como se não bastasse a esses prefeitos deterem a prerrogativa de utilizar uma concessão pública para obter vantagens pessoais – prejudicando assim a igualdade de condições entre os candidatos, que deveria ser um pressuposto inabalável da democracia –, eles também receberam do Estado a capacidade de praticamente eliminar qualquer accountability midiática sobre a sua atuação à frente do Executivo municipal.
Isso porque, com raras exceções, a maior parte dos 94 prefeitos radiodifusores eleitos em 2016 atua em cidades pequenas, nas quais a única fonte de informação local disponível é justamente a rádio da qual são donos. Uma vez controlada essa fonte de informação – um virtual monopólio sobre a circulação de notícias políticas naquela localidade –, o prefeito radiodifusor pode definir a seu bel prazer quais temas serão abordados na programação da sua rádio, quais fatos políticos serão ignorados e, principalmente, pode atuar para calar a oposição, ao negar-lhe acesso à mídia local.
Isso sem contar que, depois de eleito, irá dispor, nos quatro anos seguintes, de uma poderosa ferramenta de propaganda política, que lhe ajudará a garantir uma possível reeleição ou a pavimentação do sucesso eleitoral de um sucessor do seu mesmo grupo político.
Falta de transparência e ocultação de propriedade
Os prefeitos radiodifusores são, ainda, protegidos por uma notável falta de transparência nos dados sobre a propriedade de emissoras de radiodifusão. É verdade que o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTI) disponibiliza, em sua página na internet, uma lista de sócios e diretores de emissoras de radiodifusão. Essa lista, contudo, além de abranger apenas a propriedade de emissoras comerciais e educativas, apresenta diversas falhas e raramente é atualizada.
Para se ter uma ideia, os dados atualmente disponíveis são de outubro de 2014 – estão, portanto, defasados em quase três anos. Para a radiodifusão comunitária, os dados são ainda mais incompletos e de baixa confiabilidade. O MCTI divulga apenas informações sobre o representante legal das entidades detentoras de outorgas, sem qualquer indicação dos membros da sua diretoria. Além disso, em quase 40% dos registros, o campo “representante legal” está em branco, impossibilitando até mesmo a obtenção dessa informação básica.
Assim, quem quiser se aventurar na avaliação da propriedade de emissoras de radiodifusão precisa construir o seu próprio banco de dados. Para tanto, será necessário mergulhar em arquivos do MCTI, da Presidência da República, do extinto Ministério das Comunicações, da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, em busca dos processos de outorga que tramitaram nesses órgãos. Esses processos são, na maior parte dos casos, as únicas fontes possíveis para a obtenção dos nomes dos proprietários de emissoras de radiodifusão.
Foi esse o mergulho que fizemos e, com base nesses documentos oficiais espalhados por diversos órgãos do governo, construímos uma base de dados que conta com os nomes de mais de 23 mil proprietários de emissoras de rádio local. O objetivo final da nossa pesquisa é descobrir quais candidatos a prefeito nas eleições municipais de 2000, 2004, 2008, 2012 e 2016 dispunham de uma outorga de rádio local no momento da eleição e se a propriedade dessas rádios influenciou de maneira positiva os seus desempenhos eleitorais.
Por enquanto, concluída a análise dos dados de 2016, já é possível afirmar que, ao menos nas últimas eleições, a propriedade de emissoras de rádio local de fato ampliou significativamente a chance de um candidato se eleger prefeito. Resta agora avaliar se o mesmo ocorreu nas eleições anteriores.
Em breve, esperamos finalizar o banco de dados das eleições de todo o período estudado, que deverá contar com mais de mil casos de proprietários de rádios locais que se candidataram ao cargo de prefeito entre 2000 e 2016, e assim poder responder a essa questão.
Por Cristiano Aguiar Lopes, para o Intervozes