A fé expressa em palmas, exaltação da voz e dança. A Renovação Carismática Católica nasceu há cinco décadas, entre jovens nos Estados Unidos, com a missão de usar a alegria para aproximar os cristãos de Deus. O entusiasmo, que ia de encontro a setores mais tradicionais e até conservadores da Igreja Católica, chegou a provocar receio no Vaticano e foi observado no início com ressalvas. O movimento enfrentou críticas e preconceito antes de se consolidar como uma força dentro da Igreja. No Brasil, a plena aceitação aconteceu duas décadas depois do ingresso do movimento, sobretudo após a popularização de padres cantores, como Marcelo Rossi, na década de 1990. Estima-se uma população de católicos carismáticos de 3,8 milhões de brasileiros, mais de três vezes os adeptos das religiões de matriz africana e quase a mesma população de kardecistas. Convidada a celebrar os 50 anos no Vaticano, em maio, em audiência com o papa Francisco, a RCC tem a missão de se consolidar em todos os países onde há seguidores da doutrina católica. Em entrevista ao Diario de Pernambuco, o fundador da Obra de Maria, comunidade berço da RCC em Pernambuco, Gilberto Barbosa, detalha os limites entre a renovação católica e a doutrina evangélica pentecostal. Presidente da Fraternidade Católica das Comunidades e Associações Carismáticas de Aliança (CF), com sede no Vaticano, também explica como a renovação tem se preparado para chegar à sexta década de trabalho.
Qual a diferença e o limite entre a Renovação Carismática Católica e os evangélicos pentecostais?
Há bastante diferença. Na espiritualidade da RCC, dos carismas, da forma de rezar, do amor pela palavra de Deus, de celebrar a fé, é muito parecido. Mas, por exemplo, os evangélicos não têm essa questão dos sacramentos, de Nossa Senhora, da Eucaristia. Então, isso aí já é um espaço bem distante entre um e outro. Mas, ao mesmo tempo, a RCC caminha bastante perto da Igreja Evangélica na questão ecumênica. É tanto que nos 50 anos da RCC, celebrados pelo papa Francisco, mais de 1 mil pastores de vários países estarão presentes convidados pelo próprio papa, que dará uma audiência privada a eles. Vai celebrar junto com eles e conosco. Então, em parte é muito próximo, mas na parte da doutrina também há diferenças.
No Brasil, a Renovação Carismática foi entendida por alguns grupos como uma força para reduzir o impacto dos evangélicos. Esse movimento realmente aconteceu?
Não, na verdade o movimento carismático não tem essa missão de combater os evangélicos. Mas a gente já foi interpretado assim, como uma espiritualidade que surgiu na Igreja Católica porque os evangélicos estavam crescendo muito. A nossa missão não é essa, penso que há espaço para todo mundo. É importante que os evangélicos cresçam. E, para mim, o importante é que todo mundo seja coerente com aquilo que acredita. O evangélico precisa ser um bom evangélico. Precisa viver aquilo que anuncia. O católico também. Não adianta a gente dizer que é católico e não viver o credo. Muita gente hoje se afasta da Igreja Católica ou Evangélica porque vê a incoerência nos padres, dos fiéis. Escandaliza-se e não volta.
Em Pernambuco, como se dá a aproximação entre a RCC e os evangélicos?
A proximidade aqui em Pernambuco é pouca. Por que, na verdade, o ecumenismo no Brasil ainda está muito longe de acontecer. Em algumas regiões, nas igrejas tradicionais, existe o ecumenismo. Mas no Brasil o próprio católico é ignorante na fé. Grande parte do católico não conhece seu credo, mas também os evangélicos. E para haver o ecumenismo é preciso haver o conhecimento da doutrina. No Brasil, o entendimento é de que o ecumenismo é doutrinal e ele não é, é espiritual. Se fosse doutrinal, não seria ecumenismo. Ou então, quem é evangélico ia se tornar católico e vice-versa. O objetivo não é esse, é a comunhão na palavra, na fé.
A ausência de entendimento sobre o conceito de ecumenismo é um reflexo também da relações dentro da sociedade?
A falta de ecumenismo maior é falta de conhecimento. Primeiro do que Jesus tem como missão, de que todos sejam um para que o mundo cresça. Jesus não dividiu ninguém. Ao contrário, quando os discípulos começaram a se dividir, receberam críticas. Jesus disse que não importa quem planta ou rega, mas quem faz crescer, que é Deus. O próprio Jesus, na sua oração praticamente final de despedida deste mundo, ora ao pai e faz como último pedido que todo mundo se una para que o mundo creia. A gente precisa se unir, é necessário. Muitas pessoas não se tornam cristãos porque estão escandalizadas com a divisão, com as brigas dentro da própria igreja. O ecumenismo é possível quando a gente entender que ele é espiritual. É comunhão naquilo que é possível.
No passado, há 10 ou 15 anos, havia críticas de alguns grupos que a Teologia da Libertação era só ligada à obra e a Renovação Carismática era só ligada à questão da fé. Mas o que a gente percebe, em relação aos dois movimentos, é que com o tempo passou a haver uma preocupação com o mundo social. Isso se deve ao que? Não dá para separar a carne do espírito?
A própria Bíblia fala que quando a gente é criança faz coisas de criança. Na Igreja há espaço para todo mundo. Na Igreja é como um grande jardim, cada flor tem seu brilho. Nem todo mundo nasceu para ser da Renovação Carismática. Nem todo mundo nasceu para ser do Apostolado do Coração. Nem todo mundo que está dentro da Igreja Católica nasceu para ser da Teologia da Libertação. Penso que há espaço para todos. O importante é se unir e cada um respeitar o outro.
Quando a gente apareceu com essa novidade da espiritualidade, um movimento mais cheio de espiritualidade, a gente foi muito criticado, porque aparentemente não tinha o social. Éramos criticados de espiritualistas, que só olhávamos para o céu, que só sabíamos levantar as mãos e não olhávamos para a terra, para o chão, para o que está deitado. E não é verdade isso. Penso que a própria Teologia da Libertação, com o tempo, viu isso. E nós também com o tempo percebemos que a Teologia da Libertação fez um bem à Igreja, pois eles também deram grandes frutos. Acho que o exagero é perigoso para todos nós. Tanto no movimento carismático os exageros devem ser reprovados como na Teologia da Libertação. Jesus veio resgatar o homem no todo. A caridade, por si só, não pode salvar. O grande desafio, com a Obra de Maria e outros movimentos, é que a gente cuide do social, mas não esqueça a origem da nossa espiritualidade. É através dela que a gente se fortalece para poder ajudar o outro. Quem é que me motiva a amar o próximo se não é Deus, o evangelho. Se eu não tenho esse contato com Jesus Cristo, se eu não sou apaixonado por ele, que sentido tem eu fazer o bem ao próximo? Às vezes, quem não tem fé faz o bem melhor do que eu. E a minha motivação de fazer o bem é o evangelho. Mas é claro que a gente não deve fazer o bem só porque é cristão, deve fazê-lo independentemente de credo, de religião, de ter fé ou não. O compromisso do cristão é exigir pelo evangelho, é fazer o bem preso, nu e com fome.
Do social para o político é um pulo. A gente percebe que a renovação amadureceu e hoje já existem ministérios preocupados em discutir a política. Como é que a Renovação Carismática vê essa relação social, política e espiritual?
Bem, não estamos no céu ainda, estamos no mundo. E a sociedade para ser transformada é a partir do evangelho, mas também através da política. Para o papa Pio 12, depois da família, a coisa mais importante era a política. É através dela que toda a sociedade é transformada. Então, para o bem chegar à sociedade temos que passar pelos governantes. Rezar por eles, mas também conscientizar os católicos em quem votar. Você não pode votar de qualquer jeito. Tem que votar em alguém que realmente você esteja consciente de que vai ser o melhor, que governe a sua nação. Na Renovação Carismática, temos um trabalho de consciência política para não votar de qualquer forma.
Como funciona esse trabalho?
Na Arquidiocese, temos o trabalho Fé e Compromisso. Primeiro a fé em Deus, na doutrina e, depois, você se compromete em quem está votando e ajuda-o a governar. A gente se reúne uma vez por mês, os principais movimentos da Igreja, como a Renovação, Legião de Maria, Apostolado da Oração e outros. A gente se reúne com a liderança, conversa. Quem é o culpado pela situação que o Brasil vive hoje? É quem elegeu, quem vende seu voto, quem vota de qualquer forma. Como mudar essa história? A partir de nós, que temos o título de eleitor.
O projeto ocorre em todo o país?
É um projeto da Renovação em todo o país. Ela elege deputado federal, estadual, prefeito, diversos vereadores e, muitas vezes, quando há boas opções, apontamos para senador e presidente da República. Precisa ser alguém ligado à Igreja, que a gente conheça a sua história e principalmente a luta em favor dos mais pobres. Chegamos a marcar reuniões com eles, dizer o que não concordamos, exigimos compromisso com a doutrina social da Igreja, compromisso com a vida.
Como ocorre o trabalho político da Renovação Carismática com as pautas e demandas sociais de interesse nacional?
Nos movimentamos de diversas maneiras, há um responsável da liderança política no país. Uma em cada estado, em cada diocese. E nos omunicamos pela mídia. O que fazer contra o aborto, por exemplo. E ós vamos para as redes sociais, fazemos caminhadas, procuramos ideranças políticas com as quais temos ações conjuntas em todo o aís, quando se faz necessário. Nos reunimos, por exemplo, para colher ssinaturas para o Ficha Limpa. Estamos atentos ao que queremos mudar.
Renovação Carismática está fazendo 50 anos. Ao longo dessas cinco décadas, qual o legado do movimento para a Igreja Católica?
Quero me basear pela última audiência que tive com o papa Francisco, em fevereiro. O papa nos convidou para a grande festa dos 50 anos do movimento de Renovação Carismática. E já na audiência ele disse que quis convidar o movimento para celebrar com ele esse momento, em gratidão, louvor a Deus, pelo bem que o movimento tem feito à Igreja. Ele continuou o discurso dizendo: “Nesses 50 anos, que estou mais próximo da vida da Igreja, posso testemunhar os benefícios, o bem enorme que o movimento carismático tem feito à Igreja. Eu mesmo, pessoalmente, acompanhei durante anos na Argentina e posso dizer que os frutos são imensos”. O fruto são muitas pessoas voltando para a igreja. Pessoas afastadas têm voltado pela forma como o movimento celebra a sua fé.
O fato de o papa ser latinoamericano ajudou no trabalho da Renovação Carismática?
O que ajudou em relação à Renovação Carismática não é por ele ser latinoamericano, o que ajudou é que ele é muito ligado ao movimento e acompanhou como diretor espiritual nomeado pela Conferência dos Bispos da Argentina como assistente espiritual da Renovação Carismática. Ele era arcebispo, depois tornou-se cardeal e continua com o mesmo carinho com o movimento. Ele conhece e admira a RCC. A linha da renovação é muito a linha do papa. A espiritualidade, a forma de falar da pessoa de Jesus Cristo, a forma de celebrar com entusiasmo.
Diario de Pernambuco
Foto: Rafael Martins/DP