[CRÔNICAS] A filosofia do velho Brito

Manuel de Holanda Cavalcanti

 Não teve o direito de ver o natal deste ano, mal os paus – d’arco começaram a se vestir de ouro e lilás, ele se foi, rumo à eternidade. Para nunca mais voltar! Destino do frágil barro humano. Coisa rara não me aparecer aqui, em casa, um dia de natal, para um cumprimento cordial.

 A última vez, quando me bateu à porta, foi se anunciando: não fique contente, não, não porque não trago saco nem presente. Trata-se de um Papai Noel em visita a outro. E dizia-o, naquele sorriso característico, que sabia fazer-lhe uma festa no rosto, alegrando e comovendo a gente.

 Foi um homem simples, bondoso, humano, que aprendera, não sei em que escola, a cativar e fazer amigos. Como se fora, profundo conhecedor da psicologia humana, fazia-se às vezes, de ingênuo, para tirar – só ele o sabia – dessa ingenuidade os proveitos de que, no momento, necessitasse. O seu espírito prático e senso de responsabilidades ajudados por uma perseverança e tenacidade fora do comum, acompanharam-no, desde o modesto banco de feira, embora, por muito sortido, a casa-matriz de todos “os bancos”, até à “Rosa Branca”. Está não é a “rosa branca da lira de Davi”, de que nos fala o poeta. Representa, porém, fora de dúvidas, o coroamento de um esforço, de uma luta de gigante, no exercício de honrada atividade, onde os filhos seguem o bom exemplo paterno, na incessante jornada da vida. Tinha o Antônio de Brito repentes admiráveis.

 Conta-se que, certa vez, perguntando-lhe o Senador João Cleofas, de quem era grande admirador, pelo seu “senado”, reunião que supervisionava e que batizara com este nome, “funcionado” nas imediações do Banco da Bahia respondera sem hesitar: “vai muito bem; ali anda tudo muito direitinho. Não existe receio de cassações”. A última vez que o vi foi na sua casa comercial visivelmente abatido. Mesmo assim, ainda deu sinais de vitalidade, com sua verve alegre e constante bom humor.

 Na ocasião, entrava na “A Rosa Branca” linda flor em forma humana, menina de seus quinze anos, exuberante de vida, de saúde, de beleza e mocidade. Trajava vestido “pra frente”, que fazia lembrar uma quadrinha atribuída ao jornalista Manuel Caetano de Albuquerque Melo, ao ver senhorita com saia muito curta e decote muito baixo.

“Os teus vestidos, menina,
Pouco decentes eu acho;
são muito baixos em cima,
são muito altos em baixo”.

Contemplamos  o quadro e não  ficamos sós, ao admirar a vida, na manifestação estuante da graça feminina. Foi então que resolvi dizer-lhe ao ouvido: o mundo está perdido, caro Brito! E ele, aceitando o mundo como o mundo é, retrucou de imediato: “puro engano” perdidos estamos nós. “Atentei bem na lógica da expressão, naquela verdade, oriunda dos lábios de um homem em, vésperas de ser cadáver.

 No momento, absorvendo em todo o meu ser a síntese da dura realidade, numa espécie de auto-exame cantei, de mim para mim, no discreto silêncio de minha alma, dois versos sentimentais, da conhecida balada número sete:

“Cadê você, cadê você? Você passou.
 O que era doce e não era, se acabou”.

 Hoje, Antonio de Brito que se abria sempre num riso franco e cordial, quando me via, me é, e do seu nobre coração, uma grande saudade.
 Estas as palavras que guardei pra dizer, nesta época festiva, como demonstração de que não o esqueci. E, como um modesto presente do Papai Noel, que Le viera visitar naquela risonha tarde de natal. – Janeiro / 1972 O ARAUTO
Fonte: Livro O Sobrado de seu Miro e outras crônicas de  Manuel de Holanda Cavalcanti