Nascido em Vitória de Santo Antão (1924) e falecido em São Paulo (1978), Osman Lins é, indiscutivelmente, um dos maiores escritores brasileiros do século XX. Seus romances e contos ajudaram a configurar com muito arrojo a moderna e contemporânea ficção brasileira, ao lado de Clarice Lispector, Guimarães Rosa entre outros. Sua trajetória pode ser traduzida num desejo crescente e imperativo de ampliação do próprio conhecimento e de constantes desafios auto-impostos à sua sensibilidade de escritor ousado. Para ele, o escritor é aquele homem que se propõe novos desafios, superando, através do trabalho com a palavra, aquilo que pensava e sentia numa contínua e meditada transformação de si mesmo e do mundo em volta.
Em várias das lúcidas entrevistas que concedeu, sente-se a firme determinação de alguém centrado na reflexão de seu ofício e nas relações que esse trabalho imprescindível – o do escritor – tem com seus pares. Essa consciência foi revelada, por exemplo, numa entrevista a Esdras do Nascimento para o jornal O Estado de São Paulo, em 1969: “Escrever, para mim, é um meio, o único de que disponho, de abrir uma clareira nas trevas que me cercam”.
Sua paixão pelo ofício de escritor levou-o a orientar sua vida na direção de uma radical realização literária, às custas de privações e sacrifícios. Deve ter sido uma referência à sua própria trajetória a idéia de que o escritor, em nosso país, deve sacrificar um dedo para preservar a mão ou, em casos mais drásticos, a mão para salvar o braço. Assim são suas imagens e metáforas: contundentes e inquietantes. Sempre fez questão de ressaltar sua origem nordestina que não significava o ponto de chegada de sua obra, mas ao contrário o ponto de partida de um universo rico e esquivo a clichês e estereótipos.
Na década de 40, muda-se para o Recife, datando dessa época suas primeiras colaborações em jornais da capital. Ingressa como funcionário do Banco do Brasil, experiência que serviu para demonstrar, como ele mesmo declarou em entrevistas, a incompatibilidade entre seu espírito criador e a vida burocrática. Em 54 acontece sua primeira grande conquista literária: o romance “O Visitante” ganha o prêmio Fábio Prado, levando o jovem autor pela primeira vez a São Paulo. O livro é publicado no ano seguinte. “O Visitante” contém traços do talento que ao longo do tempo amadureceria. O livro narra a história de uma professora de cidade do interior que se vê envolvida com um pai de aluno. Como nas outras narrativas osmanianas, a história ocupa um lugar secundário diante da maneira inventiva como se conta a história.
Na década de 50, o autor começa a escrever suas primeiras peças, também premiadas. Sai em 57 seu primeiro livro de contos – “Os Gestos” – que também conquista prêmio literário. Realiza no início da década de 60 sua primeira viagem para a Europa, concretizando um dado importante na sua formação de escritor. As viagens para o velho continente tiveram um papel fundamental no seu amadurecimento intelectual. Ele via a literatura como continuidade de uma força artística capaz de unir temporalidades distintas em símbolos e imagens poéticas. Osman Lins foi um escritor animado pela idéia de tradição, não como um obstáculo à mudança, mas como algo vivo capaz de dar forma ao presente. Em 61 também estréia “Lisbela e o Prisioneiro”, com montagem da Cia. Tônia-Celi-Autran. Também em 61 é publicado o romance “O Fiel e a Pedra”, seu segundo romance e terceiro livro. “O Fiel e a Pedra” marca o fim de uma fase, a que mantém o escritor ainda preso a recursos narrativos tradicionais.
Morando em São Paulo, para onde tinha se transferido em 62, escreve “A Guerra do Cansa-cavalo” (teatro) e “Capa-verde e o Natal” (teatro infantil), todos publicados em 65. O ano divisor de águas, porém, na obra de Osman Lins é 1966. Casado pela segunda vez, com a escritora Julieta de Godoy Ladeira, o escritor lança nesse ano o livro que lhe garantiria uma posição de destaque na literatura brasileira de sua época: “Nove, Novena”. O livro é uma coletânea de nove narrativas ousadas e estruturadas de maneira rigorosa, mesmo arquitetônica. Com símbolos e sinais gráficos organizando as vozes das personagens e focos narrativos. A sobreposição dos tempos narrativos distintos e a proliferação de um registro metafórico conferem sensação de simultaneidade à narrativa, rompendo totalmente com a linearidade. À época, o crítico literário pernambucano João Alexandre Barbosa, também radicado em São Paulo, escreveu o histórico artigo “Nove, Novena, Novidade”, defendendo a carga de renovação que o texto trazia para a literatura brasileira.
Em 1970, assume a cátedra de Literatura Brasileira na Faculdade de Filosofia de Marília, e inicia o processo de composição de sua obra mais radical: “Avalovara”. Já em 71 sai a tradução francesa de “Nove. Novena” com o título de “Rétable de Sainte Joana Carolina”. Viaja, pela terceira vez, a Europa, com a segunda esposa e as filhas do primeiro casamento. Passa o ano de 72 entre as atividades de professor na faculdade e a escrita de “Avalovara”, que é publicado no ano seguinte, ano em que o escritor obtém o grau de doutor em letras. “Avalovara” é uma nova surpresa para crítica e público. Depois do ousado e marcante “Nove, Novena”, o escritor vai ainda mais longe, demonstrando um talento raro. O livro, que tem um enredo simples – as peregrinações de Abel, personagem escritor, por cidades européias e brasileiras, atormentado em sua condição de escritor diante das mazelas do mundo e da incomunicabilidade entre os homens – apresenta uma estrutura narrativa complexa e única. São oito histórias que se passam em tempos e espaços diferentes e que se cruzam e se alternam graças a um desenho que as estrutura não em capítulos, mas em blocos narrativos cíclicos. O desenho, por sua vez, que rege toda essa sinfonia é a união de duas figuras: um quadrado mágico, encontrado em ruínas romanas, que contém o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS; e uma espiral justaposta. A frase, distribuída com suas oito letras em pequenos quadrados que formam o quadrado maior, organiza a narrativa associando cada uma dessas letras a uma das histórias, de modo que quando a espiral que o escritor sobrepõe ao quadrado passa por uma letra, aparece dentro do livro a história correspondente a ela. Ou seja, o romance se constrói como uma verdadeira espiral.
A complexa estruturação do livro não prejudica sua força e poeticidade. O famoso escritor argentino Julio Cortazar afirmou, após a leitura de “Avalovara”, que se o tivesse escrito passaria uns vinte anos em silêncio.
No ano seguinte, nova viagem a Europa marca o contato e contrato com editores interessados em publicar seus livros. Em 1975 sai a tradução inglesa de “Avalovara” e o escritor tem publicada a sua tese de doutoramento – “Lima Barreto e o Espaço Romanesco”. Todo o ano de 1976 é marcado por traduções de obras suas, inclusive o recente “Avalovara”, em italiano, alemão e sueco. Nesse mesmo ano Osman Lins publica seu novo romance: “A Rainha dos Cárceres da Grécia”. Mais uma vez a inventividade literária do autor oferece aos seus leitores outra obra singular. Num diário um professor, personagem sem nome, intenta analisar o livro (A Rainha dos Cárceres da Grécia) de sua amante – Julia Marquezim Enone. Esse livro escrito por ela e legado, após sua morte, a ele, narra as aventuras de Maria de França, mulher dilacerada por um mundo de terríveis injustiças, traduzidas no moer frio da burocracia. O romance é um misto de ensaio narrativa ou narrativa ensaística.
Em 77, começa o projeto de novo livro, que permaneceu inacabado sob o título de “Uma Cabeça Levada em Triunfo”. Nesse mesmo ano seus artigos combativos ganham a primeira reunião no formato livro com “Do Ideal e da Glória – Problemas Inculturais Brasileiros”. 1978 inicia-se de maneira trágica. Nos primeiros meses do ano aparecem os sintomas da doença que o calaria. Seu enfraquecimento é gradativo, levando-o a suspender a composição de seu novo romance. Falece no começo de julho.
Embora tenha mergulhado em certo esquecimento, a obra de Osman Lins começou a ser revalorizada no final da década de 90, contando com inúmeras pesquisas universitárias e nova atenção por parte da imprensa. Osman Lins e sua obra continuam um marco da moderna ficção brasileira, transcendendo limites históricos e regionais em nome de uma literatura que procura as raízes da condição do homem atual, carente de um sentido que reafirme nossas potências de vida: o amor, o desejo, a liberdade e a percepção do outro. Todos estes, ingredientes decisivos da mais alta elaboração formal, como foi a obra de Osman Lins.