Sociólogos afirmam que ações aparentemente simples revelam muito sobre cidadania.
Rapidinho. O diminutivo caricato do pernambucano sempre é evocado como justificativa para estacionar nas vagas exclusivas de idosos ou portadores de mobilidade reduzida. Se durante essa paradinha algum agente de trânsito flagrar a situação, o trocado do refrigerante entra como poder de barganha para retirar a multa inconveniente. Uma pesquisa do Vox Populi constatou que 24%, de 2.421 entrevistados, não consideravam errado subornar um guarda. Sociólogos afirmam que esses “pequenos” deslizes cotidianos são ações que passam longe da cidadania. E valem a reflexão: que tipo de cidadão você é?
Passeia com o cachorro e não apanha o cocô com um saco plástico? Arremessa lixo pela janela do carro? As situações são inúmeras. No ônibus, o mais frequente é jogar fora o pacote da pipoca. Para os pedestres, as embalagens do bombom. Há pessoas que aceitam o troco errado para mais. Outras falsificam a carteira de estudante para se beneficiar com a meia-entrada. “A ideia é de que o indivíduo não se sente responsável pelo meio social que ele faz parte. Por isso, se coloca como exemplo de perfil e não é responsável pelas mazelas que a sociedade tem. É como se não assumisse a responsabilidade pelos distúrbios dessa sociedade”, justificou o professor de Sociologia da Unicap, Nadilson Silva.
Por isso, o inconsciente (ou consciente) encontra as mais diversas justificativas. A auxiliar de serviços gerais Maria da Conceição Oliveira, 61 anos, diz se policiar para não descartar o lixo nas vias. “Na minha casa, separo o lixo orgânico do reciclável. Se estou na rua, guardo para poder jogar no lixeiro de casa”, afirmou. Contudo, a “bituca” do cigarro, confessa, joga no chão. “Um goia de cigarro não vai entupir as galerias. O problema são os sacos plásticos, as coisas que causam os alagamentos”, legitimou-se.
Vantagens – O professor Nadilson explica que o brasileiro é criado para sempre levar vantagem nas situações. Há deslizes iniciados na infância, como mentir ou esconder coisas. “Quando não coagido, vai alimentando a cultura de que é permitido”, concluiu. A auxiliar de serviços gerais Naene Maria da Silva, 51, acredita que a consciência de que está praticando algo errado existe. “Todo mundo tem consciência, mas não liga. Não acredito que em casa as pessoas façam isso”, opinou a mulher, que utiliza uma sacola plástica dentro da bolsa como lixeira. A crítica da cidadã é justificada por uma deficiência na formação cultural brasileira. Nadilson Silva explica que algumas sociedades têm consciência das regras de convivência e contribuem para que essa relação ocorra cordialmente. “No Brasil existe a ideia de que o que é público não é de ninguém, que o que é do Estado não é nosso. É um grau de desconexão coma realidade”.
Cidadão padrão – O professor de Sociologia da UFPE Victor Rodrigues afirma que um cidadão padrão não existe. O mais próximo disso, segundo o especialista, é uma ideia ligada a um dos fundadores do conceito moderno da sociologia, Max Weber. “Esse tipo ideal não se encontra na realidade, é sempre um ideal a ser alcançado. Por isso existe nos planos das ideias, para que, a partir dessa construção, possamos nos aproximar ou distanciar da realidade”, explicou o especialista. No País, o historiador Sergio Buarque de Hollanda definiu o “homem cordial”, que tem as ações motivadas pela emoção como norte. Por essa característica as relações sociais tornam-se pessoais.
“As relações privadas dominam as relações de esfera pública. Por isso, quando se deveria existir uma convivência impessoal, fundada nas noções do indivíduo, formamos a relação pessoal. Segundo Hollanda, não vemos o Estado como sendo uma separação da família, apenas a continuidade de uma esfera privada”, esclareceu Rodrigues. O exemplo que melhor pode ilustrar a explicação seria a relação do cidadão civil como funcionário público.
Algumas pessoas buscam criar uma relação de intimidade, para ter algum benefício no atendimento. Contudo, esse tipo de trato exige total impessoalidade, tendo em vista que o Estado, representado pelo servidor público, não deve beneficiar ninguém.
O brasileiro, observa o sociólogo, condena os desvios de conduta no nível macro. Mas tema dificuldade em perceber que o desvirtuamento pode estar em pequenos atos do dia a dia. A raiz disso, defende, está na noção do homem cordial. “É algo que fica entre a ingenuidade e o cinismo”, finaliza.