Em séculos passados, as doenças de rápido contágio já causaram grandes prejuízos às nações, numa batalha em que o adversário é invisível e nos torna prisioneiros de nosso próprio lar. Em Pernambuco, a história remonta para um passado doloroso, pois no Século XIX a província foi acometida por um grande surto de cólera morbus.
Os termos pandemia e epidemia podem ser considerados um fato novo para os mais jovens hoje, quando atravessamos os efeitos do novo coronavírus, no entanto, para Vitória de Santo Antão – que daqui a seis anos completa 400 anos de fundação – eles são velhos conhecidos. O município da Mata Sul já enfrentou a varíola, a malária, a bexiga e a já citada cólera morbus, que causou tempos tenebrosos à população.
Na leitura dos fatos passados, podemos encontrar a triste história sobre a doença. Em janeiro de 1856 algumas cidades pernambucanas, inclusive Vitória, foram atingidas por uma epidemia de cólera, que resultou numa grande quantidade de pessoas mortas. Segundo apontam historiadores, o pico ocorreu entre janeiro e abril do fatídico ano. O diário da visita do Imperador Dom Pedro II na então Cidade da Vitória – como era denominada – relata mais de 1.400 mortes pela doença. No entanto, o mesmo documento diverge, pois descreve a afirmação do vigário da freguesia, que atestava ter 20 mil fiéis e que quatro mil morreram de cólera.
A doença matava rapidamente e se caracterizava por uma diarreia aguda, precedida de perda de peso e um quadro de desidratação que deixava os pacientes com olhos afundados, aparência esquelética e a textura da pele azulada. A cólera morbus “desembarcou” no Brasil através de passageiros da Barca Defensora, vinda da cidade de Porto, em Portugal, para Belém do Pará. Não demorou muito para que a peste se espalhasse por demais regiões, chegando em Bom Conselho, no Agreste de Pernambuco, deixando um rastro de contágio por cidades daquela região. A primeira vítima registrada em Vitória, na Zona da Mata, foi no Engenho Cacimbas, na zona rural.
Não diferente do que requer a situação atual por causa do coronavírus, a cidade ficou praticamente vazia, contabilizando prejuízos gigantescos. Em um de seus livros, o escritor vitoriense José Aragão expõe o relatório apresentado em 21 de abril de 1856 à Assembleia Legislativa pelo Dr. José Bento da Cunha Figueiredo, Presidente da Província, relatando a dificuldade enfrentada pelos habitantes da Terra das Tabocas.
“A cidade da Vitória tornou-se o teatro onde se passaram cenas as mais lutuosas. O primeiro lugar do termo invadido foi Cacimbas, cujos habitantes espavoridos refugiaram-se na cidade e noutros lugares, supondo escapar, assim, à influência do flagelo. Estes acontecimentos se deram a 16 de janeiro deste ano. A 19, estendeu-se a invasão pelos engenhos Chã de Aldeia e Açude Grande, penetrando igualmente na Cidade, e aí desenvolveu o prólogo dessa tragédia, que encheu de luto toda a Comarca”, descreve o relatório.
Artigos acadêmicos que dissertam sobre o ocorrido destacam que a população local hostilizou a Comissão de Higiene Pública, uma espécie de Secretaria de Saúde daquela época, chegando a expulsar a comitiva de enfrentamento à doença. O órgão propôs que a cidade fosse abandonada e as casas colocadas abaixo, numa tentativa radical de barrar os males provocados pela epidemia.
Chegando ao ponto de ter mais de 70 mortes por dia, as autoridades da época enfrentaram sérias dificuldades para o enterramento dos cadáveres. A população amedrontada se negava a realizar o ato. Diante da epidemia, a Câmara Municipal foi obrigada a mandar abrir valas em um terreno para a sepultura coletiva das inúmeras vítimas. “Lamentamos, porém, que o cemitério dos coléricos, situado em terreno adquirido pela Municipalidade ao lado da antiga Estrada Nova, hoje Rua CeI. Eurico Valois, onde se acham sepultados milhares de vitorienses de todas as condições sociais, fosse logo abandonado, não havendo, sequer, um cruzeiro, para assinalá-lo, convidando o transeunte a uma prece pelo repouso eterno das vítimas fatais do tremendo flagelo”, critica Aragão, em livro.
FÉ E DEVOÇÃO – Assim como atualmente, a esperança era uma só: atravessar com vida a epidemia e contar as novas gerações às cenas vividas. Conforme relata artigo do professor Pedro Ferrer, presidente do Instituto Histórico da Vitória, “quando o povo que restou não tinha mais a quem apelar e a igreja vendo seus filhos destruídos sem poder ao menos prestar um sepultamento digno, pois os cadáveres eram transportados em redes e colocados em grandes valas para serem enterrados, foi então que o Bispo de Olinda, Dom Frei João da Purificação Marques Perdigão fez um voto a São Sebastião que olhasse por seu povo dizimado por tão grande mal. Ele que era invocado contra a fome, a peste e a guerra, ordenando que se dedicasse nas igrejas mais antigas um altar ao Santo. Assim sendo, o povo de uma forma mais simples, reconhecendo seu favor, dedicou-lhe uma procissão, introduzindo-o juntamente com Santo Antão, face à proximidade das festas”.
Em 1857, depois de superada a crise, o Diário de Pernambuco noticiou que cerca de três mil pessoas saíram em caminhada até o Recife, mas apenas 400 conseguiram chegar à capital para rezar pela cura alcançada.
Numa comparação do hoje com o passado, percebe-se que na batalha só mudou o adversário, mas o cenário continua o mesmo, nesse embate com final ainda imprevisível.
Por Danilo Coelho e Marcio Souza, do Blog Nossa Vitória
Foto: Reprodução. CIDADE DA VITÓRIA – desenho produzido por Luis Schlappriz, cidadão suíço, em meados do século XIX