“Quantas vezes me vi no banheiro da casa dele, toda encolhida, sentindo a saliva quente dele no meu corpo enquanto ele gritava? ‘Pare de chorar como um neném. Você é louca. Ninguém mais te aguentaria.’ Quantas vezes fiquei tremendo ali no chão, contando as respirações, quase sufocando num ataque de pânico causado por um desses acessos de loucura? Mas ele nunca me bateu”. O relato, que faz parte de artigo escrito pela advogada Reut Amit, mostra que relacionamentos abusivos não são tão fáceis de serem identificados. Como descreve Reut, não é apenas quando se é espancada que se está em um relacionamento abusivo.
A internet têm se tornado um espaço importante tanto como apoio quanto como fonte de informações a vítimas de relacionamento abusivo. Comunidades, redes de discussão e mesmo grandes campanhas online têm ganhado cada vez mais espaço.
Para citar exemplos, nas últimas semanas, duas grandes campanhas, que surgiram a partir de situações de abuso, ganharam destaque nas redes sociai: #EuViviUmRelacionamentoAbusivo e “Mexeu com uma, mexeu com todas” e ficaram entre os tópicos mais comentados na web.
Milhares de mulheres demonstraram apoio umas às outras e expuseram diversos casos de agressão. Os relatos evidenciam que falta apoio às vítimas e mostram a dificuldade em, muitas vezes, reconhecer-se como vítima de um relacionamento abusivo. Outras campanhas já fizeram eco na internet discutindo o mesmo tema, entre elas #EleNãoTeBate, mas e #MeuAmigoSecreto.
Internet
Para as vítimas, a internet é um espaço importante tanto no processo de obter informação e identificar um relacionamento abusivo, quanto no apoio. A estudante Kaline Oliveira, 31 anos, foi uma das mulheres que, pelo Twitter, assumiu nesta semana que viveu um relacionamento abusivo. “Já fazem dois anos, desde o fim do meu namoro, e aprendi a detectar, pelo menos eu acho, alguns traços de homens abusivos. Não vou dizer que estou totalmente de boa para um próximo relacionamento, porque as marcas ficam, mas acho que fiquei mais esperta”, diz.
Para ela, a rede social é de extrema importância “porque não nos sentimos sós, nos mostra o que é certo e errado em diversos aspectos e nos encoraja a tomar uma atitude pelo bem da nossa vida. Porque é isso que é ser mulher nos dias de hoje, é uma luta contínua pelo direito de viver, infelizmente”.
Como muitas vítimas, Kaline não reconhecia que estava em uma relação abusiva. “Acreditava que era o jeito dele, ‘diferente’ de se importar, mesmo com tantas pessoas ao meu redor, me mostrando o contrário”, conta. “Eram brigas intermináveis, por ciúmes, por coisas mínimas, sabe? Se a gente estava numa festa e eu involuntariamente olhava pro lado, já escutava um ‘tá olhando para quem?’, se eu era simpática, ou sorria para algum amigo dele ouvia ‘gostou dele? quer ficar com ele?'” Segundo ela, levou mais de um ano para se ver livre da relação e, hoje, estar mais confortável para falar sobre o abuso.
A artista visual Brenda Rios, 18 anos, também teve um relacionamento abusivo e o relatou no Twitter na última terça-feira (11). “Acho que em nenhum lugar você se sente à vontade e mais segura para contar sobre isso, talvez a internet traga uma abertura maior e um sigilo”, diz. ”Eu venho de um período de aceitação do que aconteceu e que é necessário agora expor minha história. Mas, no fundo, claro que eu, como outras mulheres, tenho medo do que as pessoas vão achar, de ser julgada e muitas vezes de ser condenada”.
A relação de Brenda durou seis meses. “O relacionamento abusivo, normalmente começa muito velado, como se os abusos que acontecem fossem apenas preocupações e carinho que a outra pessoa tem por você. É tão enraizado na nossa sociedade, de que o ciúmes e a preocupação extrema é algo bom, que essa pessoa apenas se preocupa e te ama, acho que nos sentimos dramáticas e loucas de achar que isso é algo ruim”.
Brenda relata que o parceiro, entre outras situações de abuso, queria controlar o que fazia sempre e demandava muita atenção argumentando que se o amava devia fazer tudo com ele. Ele a fazia se sentir constantemente culpada. “Tudo que está nas redes sociais ganha mais visibilidade”, diz. “Falar sobre abusos é extremamente importante para as mulheres não deixarem passar por essas situações e cortar pela raiz o crescimento da violência contra a mulher. Acho que traz mais coragem e força para elas entenderem que não é um cuidado, o que acontece é um abuso sim”.
Rede de apoio
Para a cofundadora do coletivo Mete a Colher, Renata Albertim, um relacionamento abusivo é todo e qualquer relacionamento que deixa a mulher em situação de inferioridade ou humilhação, seja por tom agressivo na fala ou nos gestos. “É toda a relação em que a mulher se sente de alguma forma inferior, abalada psicologicamente, com medo da relação”.
O coletivo, que surgiu nas redes sociais, tem como principal missão enfrentar a violência doméstica e ajudar mulheres a entender, evitar e se livrar de relacionamentos abusivos. “A internet contribui demais, está aumentando o alcance da informação, que antes ficava em pequenos grupos de pessoas que trabalhavam com isso”, diz Renata. Ela acrescenta: “Elas se sentem muito mais seguras para falar na internet, sentem-se mais fortalecidas. Sentem que não estão sozinhas”.
O nome do coletivo vai contra o ditado “Em briga de marido e mulher, não se mete a colher”, por acreditar que é responsabilidade também de quem está em volta informar e ajudar as vítimas de relacionamentos abusivos.
Outro exemplo de apoio online é o projeto Morrer de Amor – Apoio Emocional, criado pela ilustradora Lorena Kaz, após viver um relacionamento abusivo. Ela começou fazendo histórias em quadrinho para tratar de questões sociais e relacionamentos. Com o lançamento de um livro, fez a página para divulgá-lo. A intenção era ter um espaço de identificação para mulheres – e também homens – vítimas de relacionamentos abusivos: uma espécie de terapia em grupo, como define.
“Para a vítima conseguir sair é importante perceber que tem alguma coisa errada. Depois, precisa ter coragem de pedir ajuda e de mudar. A internet é importante nesse processo, a vítima consegue perceber que tem algo errado vendo outros relatos, se identificando”.
Segundo Lorena, nas comunidades online, as vítimas recebem apoio inclusive fora da rede. “Tem muita gente te apoiando e te encorajando, até mesmo em coisas reais. Tem gente que diz que precisa de um lugar para dormir e outras pessoas oferecem a própria casa”.
Denúncias
Um dos principais canais de apoio às vítimas é o Ligue 180, ligação que pode ser feita gratuitamente, de qualquer lugar do país. De acordo com os últimos dados, divulgados este ano, o Ligue 180 registrou um aumento no número de denúncias em todo o país de 51% em 2016 em relação a 2015. Foram cerca de 1,3 milhões, mais de 3 mil atendimentos por dia. Metade dessas denúncias são de violência física, 31% de violência psicológica e 5% de violência sexual.
Em 65% dos casos, a violência foi praticada por homens contra as companheiras. E em 38%, o relacionamento entre a vítima e o agressor tem mais de 10 anos de duração.
O Ligue 180 foi criado pela então Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República, em 2005, para servir de canal direto de orientação sobre direitos e serviços públicos para a população feminina em todo o país. Hoje a secretaria foi integrada ao Ministério da Justiça.
Também está disponível uma lista, por estado, da rede de atendimento em cada cidade.
Agência Brasil