Dificuldade em obter medicamentos multiplica ações judiciais e prejudica universalidade do SUS

Tratamentos cada vez mais avançados e caros, em contraponto a orçamentos públicos enxutos. Essa equação tem levado um número crescente de brasileiros aos tribunais para exigir o direito à saúde. No Estado, um levantamento publicado em dezembro do ano passado, fruto da pesquisa de mestrado em Direito Constitucional da professora Lívia Barros, pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), identificou que as ações por medicamentos saltaram de 411, em 2009, para cerca de 3.200 em 2014 – um crescimento de mais de 700%.

Ainda de acordo com o estudo, remédios que já fazem parte da lista do Sistema Único de Saúde (SUS) respondem por 40% dessa demanda. “A partir da redemocratização e do reconhecimento da saúde como o direito humano fundamental pela Constituição de 1988, o Judiciário passou a ser visto como uma ferramenta de efetivação desse direito, e é acionado sempre que há uma omissão”, analisa a autora.

O defensor público federal José Henrique Fonseca tem sentido o movimento aumentar na Defensoria Pública da União (DPU) em Pernambuco. Para ele, a judicialização tem correspondido a uma nova forma de aquisição de medicamentos e insumos. Tanto que, de acordo com o profissional, os próprios órgãos da rede, como a Farmácia Popular e a Secretaria de Saúde, orientam os pacientes a procurar o Judiciário. “Os servidores sabem que só assim é possível conseguir tratamento”, reforça.

Fonseca relata que, pela demanda, é possível identificar os principais pontos de dificuldade. Desde o final de 2016, por exemplo, os defensores têm observado um aumento da procura por leitos de Unidades de Tratamento Intensivo (UTIs). No passado, um acordo evitou o ajuizamento de várias ações pelo Rituximabe, remédio usado no tratamento do câncer que deixou de ser disponibilizado pelo Governo Estadual por problemas no processo licitatório. “Mas nem sempre é possível resolver a questão na esfera administrativa. Muitas vezes, reconhecido o direito do paciente pelo juiz, só o bloqueio de bens do Estado garante o cumprimento da obrigação”, ressalva.

De acordo com o secretário estadual de Saúde, Iran Costa, o custo médio anual com o cumprimento de decisões judiciais chega a R$ 130 milhões, quase o orçamento disponível para os tratamentos de câncer em 2016, que foi de R$ 140 milhões. Para o gestor, há uma defasagem histórica de investimento na área, mas a falta de atualização da legislação sobre licitações e contratos com a Administração Pública (Lei Federal nº 8.666/1993) contribui ainda mais para as falhas de fornecimento. “Essa norma prejudica de modo decisivo: faz com que a Secretaria compre da pior forma e favorece disputas de mercado. Aquele que perde a licitação recorre ao Judiciário, e a aquisição fica emperrada por anos”, observa.

Apesar de admitir falhas no fornecimento, o secretário entende que o excesso de ações prejudica a universalização do SUS por permitir que quem tenha acesso ao Judiciário “fure a fila”. Médico por formação, Costa também é contra o fornecimento pelo Estado de remédios sem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). “O Brasil é o único país que libera um medicamento sem que o órgão regulador tenha aprovado”, critica.

A pesquisadora Lívia Barros vê com cautela o dado de que 90% das decisões judiciais analisadas obrigaram o Estado a financiar tratamentos nos exatos moldes requeridos pelo paciente. Entre os riscos apontados em seu estudo, estão os perigos das drogas experimentais e o lobby da indústria farmacêutica, que vê no Judiciário um atalho para burlar a burocracia do registro da Anvisa.

Para melhorar as decisões judiciais, uma das soluções propostas é o fortalecimento dos Núcleos de Apoio Técnico em Saúde. Criados a partir de uma recomendação do Conselho Nacional de Justiça, os grupos contam com equipes multidisciplinares para auxiliar os juízes. Pernambuco tem um núcleo desde 2012, mas, na avaliação de Lívia, a adesão ao serviço ainda é pequena se comparada a Estados como Rio de Janeiro, Piauí e Maranhão.

Com um orçamento em saúde que não acompanha o crescimento dos recursos da medicina disponibilizados à população, a corrida ao Judiciário parece ser um fenômeno irreversível, e isso não é exclusivo do Brasil. Porém, para o coordenador do Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Justiça (Caop) da Saúde do Ministério Público de Pernambuco, Édipo Soares, o planejamento dos gastos poderia diminuir a quantidade de ações. “Quem precisa quer ter acesso ao que há de melhor e de forma rápida, mas uma otimização do recurso e um bom estudo epidemiológico poderiam ampliar os tratamentos disponíveis”, opina.

Único caminho – O direito à saúde é integral e inclui tudo o que for necessário à prevenção e ao bem-estar. A dona de casa Elaine Santos costuma conseguir os medicamentos para os filhos, Juan Pablo, 7 anos, e Luan de Lucca, 3, na Farmácia do Estado, “embora de vez em quando faltem”. O problema são os suplementos e equipamentos necessários à alimentação das crianças. O mais velho é portador de fibrose cística. O menor, de paralisia cerebral, encefalopatia crônica, epilepsia de difícil controle e disfagia grave, e se alimenta exclusivamente por sonda.

O material para a sonda tem um custo médio mensal de R$ 400. Cada uma das 30 latas de suplemento que os dois irmãos consomem por mês é comprada por R$ 38. Anualmente, é preciso trocar a sonda de Luan de Lucca. Os gastos incluem, ainda, a aquisição de fraldas descartáveis, que a família diz nunca ter recebido. Quando o orçamento não comportou tantas despesas, a única alternativa foi entrar na Justiça. “Em dezembro, o juiz deu uma decisão mandando fornecer todo o material, incluindo a sonda, que venceu em janeiro. O Estado não cumpriu e agora estamos tentando fazer com que pague em dinheiro”, relata Elaine.

Ela contou com o suporte jurídico da Aliança das Mães e Famílias Raras (Amar), organização que reúne parentes de crianças e de adolescentes com doenças que afetam até 65 pessoas em cada 100 mil indivíduos e, por isso, são classificadas como “raras” pela Organização Mundial de Saúde (OMS). A presidente da entidade, Pollyana Dias, afirma que o caminho da judicialização tem sido frequentemente utilizado para garantir tratamento. “Em apenas um ano, cerca de 30% das 400 mães da Amar já foram assistidas por nossos advogados voluntários”, contabiliza.

Legislativo – Falhas no atendimento também levaram muitos pacientes a procurar o apoio da Alepe. De acordo com o relatório de atividades da Comissão de Cidadania, das 12 audiências públicas realizadas pelo colegiado em 2016, metade foi para tratar de questões relacionadas ao tema. Entre os assuntos, a falta de medicamentos na Farmácia do Estado, a atenção aos diabéticos, a Rede de Atendimento Psicossocial e a situação dos hospitais públicos.

Informações da Alepe

Foto: João Bita

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *