CRÔNICAS – Dona saudade

Crônicas de Manuel de Holanda Cavalcanti
Foto: Google Imagens
 Vim mexer com o seu coração, trazer-lhe o meu espírito que, às vezes, tem a cerração das noites sem estrelas e, outras vezes, o clarão das alvoradas deslumbrantes. Eu sou o passado gemendo e cantando o presente.

 Garret já disse que meu nome é o mais doce e o mais delicado termo da língua portuguesa.

 E Teixeira de Pascoais afirmou a força perturbadora da recordação e a força criadora da esperança constituem a minha essência e o meu corpo. Assim me falou esta mulher, linda como o sol e triste como a mãe carinho, que diz o último adeus ao filho estremecido – DONA SAUDADE. É continuou:

 Venho lhe enviar na memória a lembrança daqueles tempos em que você, muito criança, suponha que, com uma varinha, poderia, de cima de qualquer dos montes que circundam a sua terra, alcançar o céu.

 Daqueles tempos das serenatas gemedoras, nas noites enluaradas em que se cantavam “A Princesa e o Pagem” – Silvia deixa rolar sobre a guitarra – A pequenina cruz do teu rosário – e outras modinhas que souberam fazer nas noites claras de outrora, as doces recordações do presente! Daqueles bandos de portugueses, de quando em quando tangendo guitarras alegres, violões e violinos plangentes, acompanhando fados sentimentais e modinhas deliciosas, percorrendo as ruas, deixaram nesta sua terra, por muito tempo, na garganta afinada de suas patrícias, toda a melodia, todo o sentimentalismo da encantadora terra portuguesa!

 Daqueles tempos em que o Cônego Bernardo recitava na Matriz o “Senhor Deus da Misericórdia” com tanta doçura, tão compenetrado da profundeza, da finalidade dessa oração – síntese máxima de todas as suplicias humanas – que a gente tinha a impressão de estar diante do sobrenatural, sentindo-se, dentro do peito, os estremecimentos das fortes emoções!
 Daqueles tempos em que, nas noites de  Natal se entoava o “Gloria in excelsis Deo” como um hino magnífico a Jesus Menino, subindo ao céu!

 Tempos de “Seu Bom” e “Seu Justo”, do Externato 1º de Agosto, da Professora Amélia Coelho, que sabia fazer um mês de maio com se  fizesse a primavera da vida, cheio de inocência e poesia e em cujo último dia as flores que haviam sido presenteadas a Maria, quase todas secas, crepitavam e enorme fogueira, saturando o ar de alguma cousa parecida com seu variado perfume!

 Da escola do infatigável Professor Juca, ali, no Jiquiá, onde uma multidão de crianças, em duas pequenas salas, ensaiavam os primeiros passos para a conquista do saber!
 Do professor Rodolfo, preto que nem uma jabuticaba, mas que tinha a alma branca,como o pretinho do sabão Alimonda!

 E lembrou-se mais todas as festas de outrora: o São João, cheio de fogueiras e de busca-pés que iluminavam as ruas como uma sequência de relâmpagos fulgurantes!

 O Carnaval, com as nossas artérias principais embandeiradas e enfeitadas de palma de coco para a passagem do “Filocritica”, “Espanadores”, “Casa Verde”, e o “Abanadores”, este último tendo como papai mestre o Mestre Quincas, acendedor dos lampiões das ruas, que – para acendê-los subia e descia a escada de costa para os degraus, ligeiro, como exímio artista de circo, aos meus olhos curiosos de criança!

 E, depois de me contar todas estas coisas e muitas outras mais, ela foi se afastando de mim, deixando-me a alma mergulhada nesse misto de dor e prazer, ora contemplação da mulher mais original que minha imaginação jamais concebeu, acariciadora e cruel, risonha e grave, matrona com cara de púbere – a ilustríssima e Excelentíssima DONA SAUDADE.

Extraído do livro: O sobrado de seu Miro e outras crônicas – Manuel de Holanda Cavalcanti