Galileia e a luta para preservar a história das ligas camponesas

Localizada em Vitória de Santo Antão, berço da reforma agrária da América Latina e das ligas camponesas reivindica o olhar do poder público

O tempo nem sempre é gentil com uma luta histórica ou a memória de uma geração. O ventre que gerou as ligas camponesas no Nordeste, o Engenho Galileia, localizado em Vitória de Santo Antão, é um exemplo de que homens e mulheres podem ficar invisíveis, se não resgatarem a própria voz. Berço da reforma agrária da América Latina, em Pernambuco, Galileia comemorou 64 anos, no dia 1º de janeiro, mas ainda tem sonhos a se concretizar. Palco das ligas camponesas, que se expandiram no estado e preocuparam os Estados Unidos durante os anos da Guerra Fria, Galileia luta para não ser esquecido. Seja pela história, seja pelo povo, seja pelo olhar dos governantes. 

O primeiro Hino da Galileia (Avante, Galileia) está pronto e será gravado O campo de batalha número 1 dos camponeses ainda é uma lenda, sob o olhar de Zito da Galileia, neto de Zezé da Galileia, seu histórico presidente. Zito mora no engenho desde 2000, quando retornou de São Paulo, onde trabalhava como motorista de ônibus, para preservar a memória da comunidade, desde a fundação da Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Pernambuco, em 1955. 


Força das ligas camponesas chegaram a preocupar os Estados Unidos. Foto: Memorial da Democracia/o Cruzeiro

As ligas se transformam num barril de pólvora antes do golpe militar de 1964, a ponto de chamar a atenção do então presidente John Kennedy para o Nordeste, que via “na pobreza”, “na fome” e no “descontentamento” um pavio prestes a acender e causar implicações no futuro, onde pipocavam revoluções de trabalhadores, como em Cuba, hoje considerada uma ditadura, depois de mais de 50 anos sem eleições diretas.   


Zito é poeta, cordelista, autor do livro A história das ligas camponesas, lançado no ano passado. Ele lamenta que a comunidade esteja abandonada pelo poder público e ressalta que Galileia é um retrato da questão agrária no Brasil, onde os círculos não se fecham. Zito cresceu num tempo onde os camponeses que adoeciam e não podiam trabalhar eram despejados no prazo de 24 horas, sem direito a qualquer indenização. Ele foi testemunha de uma época que, para ele, está à espreita de voltar no campo, o que lhe causa preocupação.


Segundo ele, poucos governos estaduais deram uma atenção diferenciada à comunidade. O mais amado foi Miguel Arraes de Alencar (PSB), que ganhou um capítulo especial na obra de Zito. De acordo com o poeta, que na época tinha 15 anos, Arraes venceu o usineiro João Cleofas, dono do Engenho Pirapama, também em Vitória de Santo Antão, em 1962, tornando-se um mito entre os camponeses. Outros dois governadores que ele menciona como importantes para as famílias da localidade são Cid Sampaio e Joaquim Francisco. O primeiro sancionou a desapropriação do Engenho sob forte pressão popular, em fevereiro de 1960, três meses depois de uma batalha histórica na Assembleia Legislativa, protagonizada pelo deputado Francisco Julião. Joaquim Franscico, por sua vez, concedeu título de posse aos moradores e levou energia ao local.


Zito mora no Engenho Galileia desde 2000. Ele é um dos responsáveis por manter a memória vida do local. Foto: arquivo pessoal

“Depois da saída de Miguel Arraes, Galileia passou a experimentar um dos maiores desprezos dados a uma comunidade social. Hoje, nos perguntamos se realmente houve uma reforma agrária em Galileia ou se apenas aconteceu a primeira desapropriação de terra deste país. Foi uma grande lição”, escreveu Zito, que também concedeu entrevista ao Diario de Pernambuco.  


No domingo passado, em 6 de janeiro, estudantes, historiadores e moradores de Galileia fizeram homenagem às ligas camponesas, mas as datas históricas se estenderão por todo o ano. Passadas décadas, é no engenho que ainda se cultivam, além de hortaliças, as lutas pela preservação da memória das Ligas Camponesas. O engenho tem 503 hectares, fica a 10 quilômetros do centro de Vitória, tem 380 famílias residentes lá, mais de mil pessoas. 


O passar dos anos, contudo, foi duro com Galileia, especialmente após o golpe de 1964, quando houve ocupação, depredação, prisões e torturas de lideranças, o que causou retrocesso à comunidade. Em 1979, ano da Anistia, a casa de farinha onde as ligas nasceram estava extinta, os pés frondosos de frutas, como manga, jaca e caju tinham sido cortados. No local, segundo o poeta escritor, ainda existem casas de taipa, 40% de pessoas analfabetas e 80% sem fonte de renda. A escola que funcionava no antigo casarão fechou e as crianças precisam se deslocar cerca de 1 km para estudar. 


De acordo com Zito, em dias de chuva, com o caminho encharcado de lama, muitas não conseguem chegar à escola. O posto de saúde de Galileia só foi reformado em 2008, há 11 anos, quando Humberto Costa (PT) era ministro da Saúde do governo Lula. Naquela época, a unidade de saúde foi transformada. Antes, havia lá marimbondos, morcegos, paredes trincadas, goteiras e móveis de 1959, ano em que a desapropriação foi aprovada pela Assembleia Legislativa, que teve as galerias lotadas de galileus e crianças famintas e com sono.


 “Onde está a reforma agrária? Na lei ela não aconteceu. E não se sabe se um dia virá na marra”, declarou Zito, lembrando o primeiro slogan das ligas: “na lei ou na marra”. Ele lembra que Galileia sonhou com o céu azul e as cores de liberdade entre os anos 50 e 60, mas não passou por mudanças necessárias, como investimento em educação, na economia, na geração de renda, na infraestrutura. “Galileia até hoje ainda chora a ausência de um povo que passou”.

Diario de Pernambuco

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