A turma inteira está sentada em cima de um tapete de lã, estendido do lado esquerdo da sala de aula. Thainá segura um pequeno cartão de papel guache. A janela desenhada na superfície chama a atenção da menina de 8 anos. Enquanto observa o desenho, letras de madeira estão dispostas no chão, todas embaralhadas.
Curiosa, a menina mexe as peças até encontrar a letra ‘J’, que vai formar a palavra em sua completude. À frente da menina, através de uma janela real, se avista a paisagem da mata fechada que denota a inacessibilidade do local. É em escolas como esta, na Zona Rural de Ipojuca, a mais de 45 km da Capital Pernambucana que as ideias de Paulo Freire mais são aplicadas.
Pela abordagem freiriana, é importante alfabetizar e ensinar as pessoas de acordo com sua própria realidade. Na escola Nossa Senhora da Soledade, a realidade das crianças são as vivências na roça. Lama na estrada de barro causada pela tempestade da noite anterior, coaxar de rãs, balouçar da cana-de-açúcar.
Por isso, a professora Cícera Araújo sempre faz referências à vida no campo. Para uma turma de alunos com idades diferentes como essa, a metodologia também traz bons resultados.
“Dá para trabalhar de forma interdisciplinar. Se eles têm galinheiros, por exemplo, fica mais fácil produzir atividades e interagir quando o tema é a galinha”, ressaltou. A perspectiva do pedagogo, contudo, não se limita a pensar a alfabetização. “Pode ser aplicado para biologia, por exemplo. Exploramos e aplicamos o conhecimento do cotidiano. Pescaria, plantações, frutas.” Para as crianças, é um mundo que se abre. Tudo sempre existiu, mas só agora pode ser representado e compreendido.
São as aulas externas que mais movimentam os pequenos. Sorriem enquanto aprendem sob o pé de acerola. Estreito e alto, tem galhos compridos que quase tocam o chão. As frutas mancham de vermelho o chão e as roupas das crianças. Adriely Monique, 11 anos, estuda na mesma sala da sua irmã, Emily Raísa, 8, e a ajuda a colher as acerolas, para participarem juntas da aula.
Elas vivem na roça desde que nasceram. Para Adriely, estudar sobre as suas próprias vivências é fundamental porque ela pode materializar o que estuda. “Em casa, falo o que vi aqui na aula e todo mundo sabe o que é.”
A cultura local também é estudada em sala de aula por eles. “Muitos dos livros são com conteúdos de outros estados ou da Capital. É importante que eles saibam sobre o que que permeia a história deles”, esclareceu Cícera. No último 19 de março, dia de São José, as crianças plantaram milho para falar tanto sobre a evolução da planta quanto para conhecer sobre a própria geografia da Zona Rural de Ipojuca e Escada, cidade vizinha e cujos limites se confundem com frequência.
Influência ontem e hoje
Fim dos anos 1950 e a Capital pernambucana sequer dispunha de uma Secretaria de Educação. Os estabelecimentos de ensino municipais, por consequência, também não existiam.
Recife, então, passou a testemunhar associações de moradores, clubes populares e até prédio de liga de dominó sendo transformados em escolas improvisadas, voltadas para alfabetização de adultos e à educação básica. A igreja e os grupos de esquerda eram os responsáveis pela mudança. Tinham criado o Movimento de Cultura Popular (MCP), com o ensino sendo um de seus tentáculos mais importantes. E passaram a efervescer culturalmente a Cidade.
“Muito da visão de educação e cultura era elitista na época. Era aquela ideia tradicional, da música clássica, que não atingia o povo. Recife passou a mudar quando o MCP passou a ver as coisas mais simples como cultura, também”, contextualizou o professor de História do IFPB Dimas Veras. Freire naturalmente se tornou um líder do braço educacional do MCP e sua teoria aplicada na prática da alfabetização.
As propostas de Freire eram confundidas com o marxismo, de acordo com Dimas. “A confusão era alimentada pela formação da Frente do Recife, progressiva, popular, que surgia naquele momento elegendo Miguel Arraes e Pelópidas Silveira, que apoiavam o MCP.
Mas na verdade, ele não era marxista, nunca falou a partir dos meios de produção e, sim, da cultura. Ainda por cima, estava no MCP por ligação à igreja e não aos grupos de esquerdas. Tinha um pensamento próprio.” Em 1964, o Sítio da Trindade, em Casa Amarela, uma das escolas do MCP, foi tomado por militares e uma fogueira improvisada em frente ao prédio consumiu o material didático que havia.
“Na época, havia uma polarização política semelhante à atual. Freire pensa numa educação libertadora, quer autonomia da classe mais baixa, quer fazer com que eles possam transformar a própria história, era tido como subversivo porque isso poderia mexer no status quo social”, avaliou o professor.
“A história se repete hoje, com Freire confundido por pessoas que não entendem que educação é importante em qualquer sistema. Mas, enquanto houver desigualdade, Paulo Freire vai continuar sendo um clássico”, finalizou Dimas, citando o pensamento do pedagogo.
Folha de Pernambuco