Neste fim de semana, em que se comemora o Dia dos Professores, revisitamos a obra de um dos nossos conterrâneos mais estudados mundo afora. Com livros traduzidos em mais de 40 idiomas, Paulo Reglus Neves Freire é referência na área educacional, apesar de pouco conhecido em Pernambuco. Patrono da Educação Brasileira (Lei Federal nº 12.612/2012), também carece de popularidade fora do circuito especializado do País. A reflexão acerca do trabalho de Freire coincide, ainda, com a celebração do 50º aniversário do Dia Internacional da Alfabetização, instituído pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
De acordo com o Censo 2010, quase 91% da população brasileira com dez anos ou mais de idade é alfabetizada, restando 18 milhões que não sabem ler e escrever. Os últimos dados da Organização das Nações Unidas (ONU), divulgados em setembro, revelam que 15% da população mundial é analfabeta.
“O analfabetismo adulto compromete a educação em geral e o desenvolvimento nacional em particular. Como Paulo Freire dizia, o problema não será eliminado sem a participação da sociedade”, analisa Ângela Antunes. Ela é diretora do Instituto Paulo Freire (IPF), organização sediada em São Paulo que tem a missão de dar continuidade e reinventar o legado freireano.
Responsável por método inovador de alfabetização, Freire teria completado, se estivesse vivo, 95 anos no dia 19 de setembro. O autor pernambucano permanece emblemático entre muitos professores. Na Alepe, o nome dele homenageia pessoas que se destacam na área da educação, figurando como um dos méritos da Medalha Leão do Norte, concedida anualmente.
As ideias do educador começaram a ser difundidas em 1959, com a publicação do seu primeiro livro, Educação e Atualidade Brasileira. “Numa época do ensino burocrático, formal, impositivo, reprodutivista, Paulo Freire se contrapôs, propondo uma pedagogia libertadora, que leva em conta as necessidades e problemas da comunidade, as diferenças étnico-culturais, sociais e de gênero e os diferentes contextos”, declara Ângela.
Ao enxergar a educação como um ato político, o pedagogo desenvolveu um método que visa à emancipação humana, contribuindo para a transformação de alunos e professores. “Para ele, o ato educativo pode superar a prática de dominação”, explica a professora e pesquisadora Marília Gabriela Menezes, da Cátedra Paulo Freire da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Escrito durante exílio no Chile, o livro Pedagogia do Oprimido (1968) sintetiza a ideia de educação comprometida com o empoderamento do sujeito. Proibida durante o período de ditadura militar, a obra só foi publicada no Brasil em 1974 e é hoje uma das mais citadas em trabalhos acadêmicos de todo o mundo.
Foco dos estudos de Paulo Freire, a preocupação com a educação de adultos resultou em uma experiência considerada revolucionária em 1963. No município de Angicos, a 170 quilômetros de Natal, no Rio Grande do Norte, 300 pessoas foram alfabetizadas em 40 horas a partir do método freireano.
“Ele teve a coragem de pôr em prática um trabalho que identificava a alfabetização como um processo de conscientização. Ao aprender a leitura e a escrita, o educando refletia sobre a sua própria condição de vida e era estimulado a pensar possibilidades de alterar a realidade opressora em que estava inserido”, destaca Ângela.
Acerca do impacto de Paulo Freire no sistema educacional brasileiro naquela época, a diretora do IPF avalia que o pensamento dele “desmistificou os sonhos do pedagogismo dos anos 1960, que, pelo menos na América Latina, sustentava a tese de que a escola tudo podia. De outro lado, conseguiu superar o pessimismo dos anos 1970, nos quais a escola era meramente reprodutora do status quo”.
“Paulo Freire reconheceu que a educação tem limites, que não é chave para a transformação social. Mas, sem ela, não é possível que essa transformação ocorra, porque se faz necessário uma compreensão crítica da realidade”, complementa a professora Marília Gabriela.
Por outro lado, o empenho dele em contribuir para uma educação libertadora é enxergado por alguns como manipulação ideológica, a exemplo das críticas recentes feitas pelo movimento Escola Sem Partido. Em Pedagogia da Autonomia (1996), última obra publicada em vida, o educador, de alguma maneira, já se antecipava à questão:
“Posso não aceitar a concepção pedagógica deste ou daquele autor, e devo, inclusive, expor aos alunos as razões por que me oponho a ela, mas o que não posso, na minha crítica, é mentir. É dizer inverdades em torno deles. O preparo científico do professor ou da professora deve coincidir com sua retidão ética. É uma lástima qualquer descompasso entre aquela e esta. Formação científica, correção ética, respeito aos outros, coerência, capacidade de viver e de aprender com o diferente, não permitir que o nosso mal-estar pessoal ou a nossa antipatia com relação ao outro nos façam acusá-lo do que não fez são obrigações a cujo cumprimento devemos humilde, mas perseverantemente, nos dedicar.”
“O que Paulo Freire propõe é uma posição crítica, em que uma visão deve ser contraposta com outras visões. Não a educação bancária, que tanto criticou”, defende a professora da pós-graduação em Sociologia da UFPE Silke Weber, que tem desenvolvido trabalhos na área educacional.
Na avaliação da docente, o Escola Sem Partido já contém, em si, uma “visão ideológica da educação”. “A história da humanidade, por exemplo, é muito complexa e tem que ser examinada por vários ângulos e no momento devido para que as pessoas possam organizar o seu pensamento de forma a se situarem criticamente no mundo”, argumenta.
Legado – A contribuição da obra de Paulo Freire para a educação reverbera internacionalmente: 28 universidades de 11 países concederam título de Doutor Honoris Causa ao pernambucano. Além desses, outros 19 países dispõem de institutos ou cátedras que carregam o nome dele.
Em 2 de maio de 1997, Paulo Freire morreu, aos 75 anos. A obra dele, porém, não foi esquecida. Sobre a atualidade do pensamento freireano, Ângela destaca que “na sociedade do conhecimento de hoje, isso é muito mais verdadeiro, já que o ‘espaço escolar’ é muito maior do que a escola”. “Hoje se pensa, pesquisa e trabalha em rede. Paulo Freire insistia na conectividade, na gestão coletiva do conhecimento a ser socializado de forma ascendente”, argumenta.
A diretora do instituto que propaga as ideias do pedagogo por meio de representantes distribuídos em 90 países também frisa a contribuição do pensador para outras áreas. “O reconhecimento de Paulo Freire fora do campo da pedagogia demonstra que o seu pensamento é, também, transdisciplinar e transversal. Desde seus primeiros escritos, ele considerou a escola muito mais do que as quatro paredes da sala de aula.”
Por Gabriela Bezerra, da Alepe
Foto: Breno Laprovítera