Guardiões de saberes

Há 96 anos desfilando nas ladeiras de Olinda durante o Carnaval, a Troça Mista Cariri Olindense, reconhecida por artistas e foliões como um clássico dessa festa popular, ganhou o título que faltava em quase um século de história. Responsável por carregar a chave que abre as festividades no município, a agremiação foi declarada, em 2016, Patrimônio Vivo de Pernambuco. Mais que uma condecoração oferecida a um seleto grupo de representantes dos saberes, histórias e memórias da Terra dos Altos Coqueiros, a honraria representa a responsabilidade de preservar e difundir uma tradição que, acredita-se, merece ser experimentada pelas próximas gerações.

Às 4h do domingo de Carnaval, um homem fantasiado com longas barbas brancas, chapéu de couro, óculos de Lampião e um cajado desfila em cima de um burro. O personagem, denominado Cariri, foi inspirado em um mascate do Mercado de São José, no Recife. “Conheci o bloco há mais de vinte anos, a convite de um colega de trabalho. Fui me envolvendo cada dia mais: me associei ao clube, passei a fazer parte da diretoria, até que me tornei presidente”, lembra Sérgio Roberto de Souza. “Muitos dos que estão no Cariri são filhos e netos de brincantes.”

Souza orgulha-se de fazer parte da troça – termo que designa uma pequena agremiação que tem como marca a irreverência – mais antiga de Olinda. “O Homem da Meia Noite nasceu de uma dissidência do Cariri, em 1932. Anos depois, a mágoa entre os grupos passou”, afirma, lembrando que o tradicional bloco do boneco gigante é Patrimônio Vivo do Estado desde 2006. “É uma honra muito grande carregar esse título. Batalhamos por isso durante cinco anos e acredito que ele nos torna mais reconhecidos e respeitados”, acrescenta o presidente do Cariri.

Além das duas agremiações, Pernambuco possui, atualmente, outros 49 patrimônios vivos reconhecidos. Entre eles, estão artistas do barro, cordelistas, profissionais das artes cênicas, caboclinhos e representantes de vários setores culturais, compondo uma pequena amostra da diversidade característica do Estado.

A seleção dos agraciados é feita anualmente pelo Conselho Estadual de Preservação do Patrimônio Cultural. Os candidatos, que precisam ser indicados por instituições públicas ou entidades sem fins lucrativos, devem comprovar que vivem em Pernambuco há, pelo menos, vinte anos e que desenvolvem, também há mais de duas décadas, atividades tradicionais ou populares da cultura estadual. Se eleitos, passam a ter direito a uma bolsa vitalícia mensal no valor de R$ 1,6 mil (pessoa física) ou de R$ 3,2 mil (grupos), ganham prioridade na análise de projetos apresentados ao Sistema Estadual de Incentivo à Cultura (SIC) e são convidados a transmitir conhecimentos em atividades e eventos promovidos pelo Poder Público.

“Nosso Estado é pioneiro nesse tipo de legislação”, explica a presidente da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe), Márcia Souto. “Sem desvalorizar as homenagens póstumas, também muito importantes, acredito que seja essencial enaltecer nossos artistas enquanto vivos. É importante para eles serem reconhecidos pela sociedade e pelo Poder Público como mestres de um saber. Vemos que isso os impacta muito”, acrescenta a gestora, destacando, ainda, o benefício financeiro: “É raro quem consegue viver de arte popular no Brasil. Muitos abandonam suas atividades porque precisam sobreviver”.

Sustento – A bolsa é fundamental para preservar a arte e garantir a subsistência do Patrimônio Vivo João Elias Espíndola, rendeiro de 83 anos que vive em Poção, no Agreste. Aos 19 anos, ele aprendeu a técnica da renda renascença enquanto se recuperava de um acidente de caminhão. Após enfrentar inúmeros preconceitos por atuar em uma atividade tradicionalmente feminina, desenvolveu um estilo único: o ponto lagarta.

“A gente vive das plantações de milho e de feijão, além do Bolsa Família. Quando o serviço acaba ou não tem chuva, fazemos renda para ter um complemento”, conta Marilene Espíndola da Silva, sobrinha de João. Ela, a mãe e as três irmãs são as discípulas do mestre rendeiro, que não produz mais por questões de saúde, mas que verifica cada trabalho feito pelas familiares. “Meu tio compra as linhas, os moldes e os lacetes para a renda”, diz Marilene.

Com dificuldades de audição e problemas na perna, ele usa a bolsa para cuidar da saúde e para comprar material. “Sinto orgulho. Nunca pensei em ganhar esse reconhecimento”, conta, com dificuldades, João Espíndola.

Transmitir saberes e preservar a tradição da ciranda é o maior desejo de Maria Madalena Correia do Nascimento, a personagem dos famosos versos “Essa ciranda quem meu deu foi Lia / que mora na Ilha de Itamaracá”. Aos 73 anos, Lia de Itamaracá, Patrimônio Vivo de Pernambuco desde 2005, batalha para reerguer o Centro Cultural Estrela de Lia, que desabou após as fortes chuvas de 2013. O espaço, custeado pela própria artista por meio da aposentadoria que recebe como merendeira, era palco de festas e apresentações de ciranda.

Orçadas em R$ 540 mil, as obras do novo centro tiveram início no ano passado, após destinação de R$ 100 mil por meio de emenda parlamentar do presidente da Alepe, deputado Guilherme Uchoa (PDT). “Em janeiro deste ano, inauguramos a primeira fase, que é o palhoção para as cirandas. No entanto, falta construir as salas, banheiros, cozinha-escola e o resto da estrutura. Precisamos de mais verbas para terminar o espaço”, revela Lia, que pretende fazer do centro um local de oficinas e de difusão da arte que representa.

Empresário da artista, Beto Hees reconhece a importância da política de valorização dos artistas da cultura popular de Pernambuco. Ele avalia, no entanto, a necessidade de um apoio mais estruturado do Poder Público. “O título tem que ser acompanhado de outras ações. A razão pelo reconhecimento de Lia é a ciranda, mas percebemos que a atividade não vem sendo estimulada de forma suficiente em nosso País. Mesmo sendo a linguagem cultural da ilha, estamos travando uma luta para conseguir retomá-la”, opina o produtor. Ele sugere um caminho: “Nossos jovens precisam ser apresentados às artes populares. Se não entrar sangue novo, corremos o risco de assistirmos tradições acabarem”, prevê.

Novos talentos reconhecidos

Indicado pela Alepe, o ator e diretor teatral José Pimentel foi um dos seis Patrimônios Vivos escolhidos neste ano. Também mereceram a honraria a parteira Maria dos Prazeres, o músico Mestre Chocho, o coreógrafo André Madureira, o Reisado Inhanhum (de Santa Maria da Boa Vista) e a Sociedade dos Bacamarteiros do Cabo de Santo Agostinho.

A política de Patrimônio Vivo de Pernambuco é fruto da Lei Estadual n° 12.196/2002, atualizada, no ano passado, pela Lei n° 15.944/2016. A nova norma reajustou o valor da bolsa em 113% e aumentou de três para seis os títulos concedidos a cada ano.

 

Por Ivanna de Castro, da Alepe

Foto: Priscilla Buhr/Cortesia

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