As Ligas, uma chacina e a história no meio

De grão em grão a história enche o papo. Dois desses grãos ganham vida hoje, no Recife, em formato de livro. Um é sobre o movimento que colocou os camponeses na sala de estar da política nacional, no período 1955-1964. Chama-se A história das ligas camponesas — testemunho de quem a viveu, de autoria de Zito da Galileia (foto), que era menino quando o movimento começou e hoje mora no mesmo local, as terras do Engenho Galileia, em Vitória de Santo Antão, na Zona da Mata pernambucana. O outro é sobre a matança de seis guerrilheiros da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), ocorrido em 8 de janeiro de 1973, numa área rural do atual município de Abreu e Lima, Região Metropolitana do Recife. Tem como título O massacre da Granja São Bento, e foi escrito pelo jornalista Luiz Felipe Campos. As duas obras saem pela Cepe (Companhia Editora de Pernambuco). O lançamento conjunto acontece às 19h, na Livraria Cultura do Paço Alfândega (Bairro do Recife).

Os dois temas não estão ligados diretamente entre si, mas vale notar que um é emblemático da mobilização social dos anos que antecederam o golpe civil-militar de 1964 (o da Ligas) e o outro da luta armada empreendida contra o regime por organizações de esquerda (como a VPR), no pós-1964.

Ambos os casos são de dimensão nacional e, felizmente, não se enquadram naquele caixote que se costuma chamar de “história esquecida”. A luta dos camponeses das Ligas é tema já objeto de diversos estudos.  A bibliografia recente tem duas obras de fôlego sobre o maior nome do movimento: Francisco Julião — uma biografia, de Cláudio Aguiar (Civilização Brasileira, 2014) e Francisco Julião — em luta com seu mito, de Pablo Porfírio (Paco Editorial, 2016). Advogado, escritor e político pernambucano, Julião (1915-1999) foi o líder que deu projeção nacional às Ligas. Já sobre o próprio movimento existem pelo menos dois livros clássicos, ambos curiosamente com o mesmo título: As Ligas Camponesas. O primeiro saiu em 1982, de autoria de Fernando Antônio Azevedo, e o segundo em 1984, de Élide Rugai Bastos.

A obra de Zito da Galileia enriquece este conteúdo com  o testemunho de alguém que estava lá quando tudo estava acontecendo. Ele tinha oito anos quando surgiu a Liga do Engenho Galileia, em 1955, que daria origem ao movimento. “Este livro foi escrito por uma questão de paixão pela história da Liga Camponesa da Galileia, que nasceu na residência do meu avô, o velho Zezé da Galileia”, conta ele. “Procurei passar para a geração atual aquilo que vivenciei na roça, onde me criei ganhando o pão com o trabalho no cabo da enxada, oprimido pelo latifundiário”. Em outro trecho relata como era a situação da época, no local: “Crianças nasciam e cresciam sem escola, viviam descalças e sem roupas. Mulheres morriam de parto. (…) Era um sofrimento.

Minha mãe teve quatro abortos. Me lembro dela sendo colocada numa cadeira onde amarraram dois paus, carregada por quatro homens em plena madrugada, na chuva, com muita lama, até a pista, onde pernoitava um fiscal da Rede Ferroviária Federal, que controlava os horários dos trens. Ele telefonava para a praça de automóveis de Vitória e chamava um jipe. Quando a condução chegou, ela já tinha desmaiado de cinco a sete vezes, perdendo muito sangue”.

Já no caso da chacina dos guerrilheiros, temos Soledad no Recife (Boitempo Editorial, 2009), do escritor pernambucano Urariano Mota. Trata-se de um romance baseado em fatos reais. Uma das vítimas da matança, Soledad Barret Viedm era paraguaia. Namorava “Daniel”, codinome do famoso Cabo Anselmo, informante do delegado Sérgio Fleury (SP) e autor da delação que culminou na morte do grupo.

Já no livro agora lançado de Luiz Felipe Campos — fruto de pesquisa de mais de cinco anos — não há espaço para ficção. É tudo verdade. O autor reconstrói em detalhes como foi montada e executada a operação na qual morreram, além de Soledad, também Pauline Reichstul, Evaldo Luiz da Silva, Eudaldo Gomes da Silva, Jarbas Marques e José Manoel da Silva.

Diferentemente do que apregoou a versão oficial da época, O massacre da Granja São Bento mostra que não houve um combate entre guerrilheiros e policiais, e sim uma articulação em que os seis militantes foram induzidos a encontrarem-se em Pernambuco — para serem mortos. “Do laudo [oficial] depreende-se que os perigosos terroristas não estavam com a pontaria aguçada naquele dia quente de janeiro”, narra o autor. “Eles teriam disparado 18 vezes, usando cinco armas diferentes — quatro revólveres e uma espingarda — mas não acertaram um único tiro. Os 18 tiros mal disparados contrastavam com os 32 que os guerrilheiros receberam, dos quais 14 foram nas cabeças”.

Os livros de Zito da Galileia, calejado militante de 70 anos,  e de Luiz Felipe Campos, jovem talentoso de 28 anos, são grãos de fina qualidade que enriquecem o conhecimento sobre nossa história recente.

Serviço
 
Horário e local: Hoje às 19h, Livraria Cultura
(Paço Alfândega)
Preços: A história das Ligas Camponesas (R$ 40)
e O massacre da granja São Bento (R$ 30).

do Diario de Pernambuco
Foto: Paulo Paiva/DP

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *